Margaret Atwood a VEJA: ‘Aborto é questão de saúde pública’
Autora de 'O Conto da Aia' ironiza a fama de profetisa, analisa como o livro se tornou um símbolo antiautoritarismo e faz alerta sobre as mudanças climáticas
Aos 9 anos, Margaret Atwood leu A Revolução dos Bichos, crendo se tratar de um livro infantil. Ficou chocada com a trama, uma alegoria política sobre o autoritarismo. “Chorei quando o cavalo morreu”, diz ela (no final da obra de Orwell, o animal é levado por uma carrocinha por não ter mais força para trabalhar). A experiência lhe serviu como uma primeira lição sobre a humanidade: o mundo nem sempre é justo — especialmente quando quem detém o poder faz o que quer sob a proteção de uma religião ou uma ideologia. Tal aprendizado é patente em sua obra: aos 84, Margaret é uma escritora mundialmente celebrada e com gosto particular por imaginar futuros sombrios. Em O Conto da Aia, de 1985, adaptado para a série de TV The Handmaid’s Tale, um governo fundamentalista cristão nos Estados Unidos abole direitos de mulheres e gays — trama que encontrou eco no governo de Donald Trump. Em Oryx e Crake (2003), uma pandemia devasta o planeta impulsionada por mudanças climáticas e manipulações genéticas. Na entrevista feita por vídeo a partir da casa dela, em Toronto, no Canadá, Margaret fala sobre suas inspirações, medos e como lida com a viuvez, um dos temas de seu novo livro, Tig & Nell e Outros Contos, publicado pela editora Rocco.
A senhora é chamada de “profetisa da literatura”. O que pensa da fama? Posso dizer com certeza que não, não sou uma profetisa. Não do tipo que sabe exatamente o que vai ocorrer em breve. Gosto de imaginar aquilo que pode acontecer: “Se o mundo seguir esse caminho contestável, a realidade será assim”, por exemplo. Distopias como O Conto da Aia são possíveis, mas não inevitáveis.
Foi certeiro, contudo, pensar em um futuro no qual uma direita religiosa dominaria os Estados Unidos, mirando direitos conquistados por mulheres e gays — bandeiras levantadas pela campanha de Donald Trump. O futuro é previsível se observarmos o passado, assim como a ascensão e a queda de regimes, o modo como eles se manifestam e como afetam nossas vidas. A liberdade de imprensa e a verdade são as primeiras a ser contestadas, assim como o direito das minorias. No caso dos Estados Unidos, nos anos 1980, quando escrevi O Conto da Aia, seria improvável que o país se tornasse um regime comunista totalitário. Mas uma ditadura religiosa era possível. Eu não previ o futuro: os sinais estavam ali.
O livro serviu de inspiração para a bem-sucedida série de TV The Handmaid’s Tale. Tinha receios em relação a essa adaptação? Sinceramente, não achei que ficaria tão boa. A arte como um todo é um tiro no escuro. Às vezes, uma produção tem ótimos profissionais e, mesmo assim, não dá certo. Tive sorte. The Handmaid’s Tale é uma série ótima, que está agora rodando sua sexta e última temporada. Quando estreou, em 2017, os jovens assistiam dizendo: “Isso nunca vai nos acontecer”. Então, Trump começou a governar.
“Sou a favor do direito da mulher de não morrer. Ninguém gosta de fazer um aborto. Ninguém acorda num fim de semana e pensa: ‘Vou ali fazer um aborto’. É uma questão de saúde pública”
O Conto da Aia se tornou símbolo do direito reprodutivo, já que mulheres e médicos que interromperam alguma gravidez são punidos na trama. Por que a senhora é a favor do aborto? Sou a favor do direito da mulher de não morrer. De não ter de sangrar até a morte ou pegar uma infecção em procedimentos clandestinos, ou de ser obrigada a carregar um feto natimorto dentro de si — um direito que as propostas mais extremistas querem limar. Ninguém gosta de fazer um aborto. Ninguém acorda num fim de semana e pensa: “Que lindo dia, vou ali fazer um aborto”. É uma questão de saúde pública. É também sobre os perigos de o Estado ter direito sobre o corpo do indivíduo.
Pode se aprofundar nesse ponto específico? Se o Estado tem o direito de decidir sobre o corpo de alguém, então abrem-se precedentes. Se os governantes podem decidir sobre o corpo feminino, eles também poderão fazê-lo sobre o masculino. Se o Estado pode obrigar uma mulher a ter um filho, também pode proibi-la de ter um. Como o controle de natalidade na China — que culminou no assassinato de muitas bebês meninas. Existem, ainda, grupos religiosos que acreditam que, assim que um óvulo é fertilizado, o embrião já possui uma alma, então é uma pessoa. Sendo assim, a fertilização in vitro pode ser proibida, já que boa parte dos embriões não sobrevive ao processo — argumento que vem sendo usado por republicanos fundamentalistas para tentar criminalizar o procedimento.
Recentemente, uma controversa proposta de lei no Brasil tentou comparar o aborto legal em casos de estupro a um homicídio. Apoiadores diziam que o feto não cometeu o crime. A pena para a mulher, aliás, se tornaria maior do que a do estuprador. Ficou sabendo desse caso? Não, não soube. Mas vejo que esse é um caso clássico do ódio contra a mulher e do hábito de responsabilizá-la por tudo o que lhe acontece. É uma história típica que se repete. Até a psicologia tem dessas, é tudo culpa da mãe.
Há chances de que Donald Trump retorne à Presidência dos Estados Unidos. Como vê esse cenário? Bem, essa é uma escolha dos americanos, e eles deveriam pensar que não estão votando numa pessoa, mas sim em um sistema de governo. É isso que está em jogo em diversos países atualmente. Os Estados Unidos tinham uma dinâmica de poder em que se elegia um governo democrata ou republicano, mas o sistema se mantinha incólume. Quando Trump assume, ele sabota essa dinâmica e impõe sua figura autoritária, que manda e desmanda.
Com sua habilidade de imaginar o futuro, o que esperar de um novo mandato de Trump? Se Trump for eleito, apenas direi: “Apertem os cintos”. Primeiro ele vai aumentar a pressão contra os republicanos moderados e contra qualquer competição interna. Ele fará o mesmo com os democratas, que terão de se radicalizar. E quem está ao lado dele pode achar que está protegido, mas egos inflados só protegem a si mesmos. Por isso digo que a melhor escolha será o candidato democrata. Até se fosse Joe Biden. Mesmo que fosse um nabo. Eu votaria em um nabo em vez de Trump. Isso porque ainda se trata de votar em um sistema de governo e não em uma pessoa — e esse sistema é a democracia.
Qual sua opinião sobre a possibilidade de Kamala Harris se tornar a próxima presidente americana — e a primeira mulher a chegar ao cargo? A entrada da Kamala na corrida eleitoral é de longe um dos melhores momentos da história da política americana. Ela é inteligente, articulada, forte e informada. Trump vai ter dificuldades para intimidá-la, e ela, por ser advogada, sabe lidar com criminosos. Creio que será uma presidente formidável, especialmente em tempos nos quais aspirantes a ditadores fazem joguinhos de poder e tentam enfraquecer a democracia.
Para além do cenário político, qual sinal a humanidade está falhando em ver hoje que será preocupante em um futuro próximo? As mudanças climáticas, com certeza. Todos serão afetados, mas principalmente os países mais próximos da Linha do Equador e do norte do planeta. Existem amplos estudos sobre isso e podemos especular o que vai acontecer. As correntes marítimas serão afetadas, assim como a força dos ventos e o nível do mar. Essas mudanças devem causar eventos extremos, como verões superquentes e invernos muito rigorosos. Além de atingir comodidades que consideramos garantidas: as mudanças climáticas vão afetar desde voos de aviões e cruzeiros de navios até a produção de alimentos e a pesca. Mas já estou velha para me preocupar. Vocês, jovens, é que devem ficar de olho nisso.
Seu novo livro, Tig & Nell e Outros Contos, fala de um casal inspirado na sua relação com o também escritor Graeme Gibson, que morreu em 2019, aos 85 anos. Entre as histórias está um relato honesto sobre ser viúva. Como tem sido este momento na sua vida? Ser viúva não é divertido. Tento me consolar conversando com outras pessoas na mesma situação que eu. A partir de certa idade, a morte já não é vista com surpresa. Então, estou preparada para perdas — se é que é possível se preparar para isso.
Em um dos contos, a senhora entrevista, com bom humor, o autor George Orwell, de 1984, através de uma médium. Costuma falar com os mortos com frequência? Eu tento, mas eles raramente respondem. Orwell foi uma grande inspiração para meu trabalho. Quando criança, li A Revolução dos Bichos achando que era um livro infantil. Chorei quando o cavalo morreu. Mais madura, li 1984 e me encantei com a ficção especulativa e como ela serve de alerta para futuros que não deveriam concretizar-se.
“As mudanças climáticas vão afetar desde voos de aviões até a produção de alimentos. Mas já estou velha para me preocupar. Vocês, jovens, é que devem ficar de olho nisso”
As distopias se tornaram populares nos últimos anos. Como analisa esse interesse? Vou ter de voltar um pouco no tempo para falar sobre isso. Sou especialista em literatura vitoriana, nos romances que se passam no século XIX. Na época, o mundo estava esperançoso, vivia uma utopia. A medicina avançava, desenvolvemos as vacinas. Os sistemas de esgoto foram amplamente implementados. Os trens conectavam lugares distantes. Tudo parecia ir bem, até a explosão da Primeira Guerra Mundial. Depois, a Segunda Guerra, e, em seguida, governos autoritários se espalharam pelo mundo. Não era mais possível pensar que o futuro seria brilhante. Foi nesse cenário que as distopias floresceram — e continuam a mostrar sua força ainda hoje.
Orwell foi chamado de pessimista. Compartilha com ele dessa visão de mundo? Na primeira vez que li 1984, achei pessimista, mas, no fundo, não é. Ao final do livro há um apêndice que analisa o regime com um tempo verbal no passado, como uma matéria de jornal. Isso significa que a ditadura daquela distopia teve um fim, pois esse texto indica liberdade de imprensa. Orwell sabia que regimes autoritários não se sustentam para sempre — e ele nos alertou para que não seja necessário passar por um. Tento fazer o mesmo com a minha obra.
Seu nome é constante na lista de apostas para o Nobel de Literatura. Almeja conquistar a honraria? Sabe o que dizem sobre o ganhador do Nobel de Literatura? Que primeiro você ganha e, em seguida, você morre. E isso é verdade, pois os ganhadores costumam ser bem velhos. Mas o Nobel também me parece o fim da estrada: ninguém liga mais para o que um autor lança depois do prêmio. Então, não, não é uma honraria pela qual almejo. Ainda quero poder escrever muito mais — assim espero.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2024, edição nº 2904