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Um mundo de podridão

O megajulgamento do traficante mexicano El Chapo trará informações preciosas sobre pessoas que o protegiam — militares, policiais, empresários e políticos

Por Duda Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h25 - Publicado em 9 nov 2018, 07h00

Com uma Justiça corrupta e sem credibilidade, os mexicanos acostumaram-se com a ideia de que é melhor deixar os peixões do narcotráfico ser extraditados para os Estados Unidos. Do lado norte da fronteira, os americanos agradeceram pela possibilidade de prender, julgar e condenar, sem risco de escapadas, os responsáveis pelo envio de toneladas de droga ao seu país. Mas o homem que passará os próximos quatro meses indo e vindo entre a cela solitária de uma prisão de segurança máxima no sul de Manhattan e um tribunal federal no Brooklyn, em Nova York, dará um trabalho extra.

O processo contra o narcotraficante Joaquín Guzmán, El Chapo, ex-chefe do cartel de Sinaloa, soma 14 000 páginas, organizadas em 23 fichários brancos. Além disso, reú­ne 117 000 gravações de áudio. Centenas de testemunhas serão ouvidas. Para evitar que sejam assassinadas por capangas de El Chapo, elas foram colocadas em programas de proteção e não tiveram a identidade revelada. Os nomes dos jurados também estão sendo preservados, e eles serão escoltados pelo tempo que durar o julgamento. Todo cuidado é pouco. El Chapo é acusado de ter ordenado a morte de pelo menos 33 pessoas, mas algumas estimativas põem essa cifra num patamar astronômico — 13 000. Para ele próprio, o número mais próximo seria em torno de 2 000. Sempre que alguém se colocava em seu caminho, El Chapo não hesitava em eliminá-lo. Entre suas vítimas estava Vicente Bermúdez Zacarías, o juiz que atuou no seu processo de extradição, em 2016. Bermúdez saiu para fazer exercícios em sua cidade e tomou um tiro na cabeça. A carnificina atingiu tal grau de insanidade que, segundo documentos do atual processo, um de seus mercenários chegou a construir uma casa com revestimento plástico nas paredes e um dreno feito sob medida para recolher o sangue das vítimas.

Como o deslocamento do mexicano durante o processo será feito pela Ponte do Brooklyn, é possível que a via seja interditada duas vezes por dia para dar passagem à comitiva de veículos blindados com uma equipe da Swat e uma ambulância, acompanhados do alto por helicópteros. Tudo para frustrar tentativas de resgate. El Chapo, afinal, já escapou duas vezes da prisão com a ajuda de amigos. Na primeira, em 2001, o guarda abriu a porta de sua cela e ele caminhou até a lavanderia. Entrou num cesto de roupas, que saiu pela porta da frente e foi colocado dentro de um caminhão. Na segunda, em 2015, construiu-se um túnel de 1,5 quilômetro até o seu banheiro. El Chapo fugiu em um carrinho motorizado feito especialmente para ele.

Na sua última detenção, em 2016, o traficante foi localizado quando negociava dar uma entrevista a uma atriz mexicana e ao ator americano Sean Penn — eles pretendiam fazer um filme sobre a vida do bandido. Com sua prisão, o cartel passou a rachar com disputas internas e perdeu pulso. No seu vácuo, cresceu o Cartel Jalisco Nova Geração, que se tornou conhecido por sumir com pessoas e jogá­-las em valas coletivas. A prisão de El Chapo, portanto, não arrefeceu a praga do crime organizado no México. Mas, ao menos, tem o potencial de ajudar o país a reforçar sua máquina estatal de combate ao narcotráfico. Entre os que vão depor há ex-aliados do chefão, como os irmãos Pedro e Margarito Flores. Eles embarcaram diversos carregamentos de cocaína para Chicago. Fugiram do México em 2008 porque começaram a se desentender com o chefe e passaram a temer pela própria vida. Pagaram um preço alto por isso. No ano seguinte, o pai deles foi morto. Seu carro foi encontrado abandonado em Sinaloa com uma mensagem que dizia que a culpa era dos filhos, que estavam entregando informações às autoridades americanas. O depoimento deles levou à prisão de dezenas de pessoas. “O mais importante não é que El Chapo esteja preso, mas que ele esteja sendo julgado”, diz o cientista político mexicano Vicente Sánchez Munguía, da universidade Colégio da Fronteira Norte, em Tijuana. “Isso permitirá que se conheçam os delegados, os militares, os políticos e os empresários que fizeram parte de sua rede de proteção.”

Publicado em VEJA de 14 de novembro de 2018, edição nº 2608

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