Um ano depois, guerra na Ucrânia atiça o jogo de poder no tabuleiro global
A agressão russa foi contida pela resistência ucraniana e o confronto continua, sem grandes avanços nem negociação
A terceira década do século XXI mal começou e já transformou o mundo de maneira inapelável, espremendo em meros três anos uma planilha de mudanças capaz de dar nó em chatbots — para ficar só na mais recente reprodução eletrônica do talento humano para entender e interpretar fatos, movida pela dita inteligência artificial. Mal saído de uma pandemia que fechou populações em casa e esvaziou continentes, o planeta entrou em guerra. Na sexta-feira 24, fez um ano que a Rússia invadiu a Ucrânia, uma agressão intencional e não provocada com repercussões em toda parte. Fincados em seus propósitos, os russos atacaram e os ucranianos se defenderam, fortalecidos por armamentos e recursos vindos dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Passados doze meses de tiros, bombardeios, destruição e mortes, a ferida segue aberta, sem perspectiva de trégua, em pleno continente europeu, aquele mesmo que se julgava impermeável a conflitos bélicos depois da tragédia de duas guerras mundiais.
Separados por duas horas e 1 100 quilômetros, o americano Joe Biden e o russo Vladimir Putin deixaram claro o impasse em discursos três dias antes do triste aniversário. “A Ucrânia jamais será derrotada pela Rússia”, proclamou Biden em Varsóvia, onde se encontrou com antigos satélites da União Soviética. “O Ocidente está transformando um confronto local em uma guerra mundial contra a Rússia”, disparou Putin, em aguardado pronunciamento anual.
A invasão da Ucrânia sacudiu a estrutura de poder pré-pandemia. Em 2019, Donald Trump conduzia uma política externa que elegia a China como inimigo número 1, dispensava solenemente aliados tradicionais na Europa e se aproximava de colegas de truculência — Putin, especialmente. Em 2023, Biden tenta conter o avanço chinês com uma vasta contraofensiva diplomática e comercial, em vez de lhe impor sanções e tarifas, cultiva aliados europeus com promessas, recursos e afagos e encarna em Putin o autocrata que ameaça o mundo livre. No início da visita à Polônia, pegou um trem e virou a noite em viagem-surpresa a Kiev, onde circulou pela rua com o presidente Volodymyr Zelensky. “Sou testemunha: Kiev permanece orgulhosa, de pé e, mais importante, livre”, descreveu depois. A excursão (da qual o Kremlin foi avisado) ilustra o fracasso da campanha de Putin: prevista para durar dias, com a imediata tomada da capital e deposição do governo, a invasão da Ucrânia converteu-se em um atoleiro. Os invasores ocupam uma faixa ao longo da fronteira leste e o objetivo deles agora se limita a controlar a disputada região de Donbas, no que têm sido frustrados pela resistência ucraniana.
Em consequência da guerra, Alemanha, França e Reino Unido anunciaram reforços sem precedentes no setor de defesa, adormecido há anos, e a agonizante Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) saiu do coma: seu orçamento aumentou quase 30% e as neutras Suécia e Finlândia pediram adesão ao bloco, hoje encarado como única força capaz de conter a sanha expansionista russa. “Putin achou que a influência ocidental estava em declínio e que poderia reposicionar a Rússia com a invasão”, avalia Sergey Radchenko, historiador da Universidade Johns Hopkins, de Baltimore. “Foi uma péssima estratégia.” Não há contabilidade confiável de vítimas, mas calcula-se que 200 000 soldados russos tenham morrido ou sido feridos em decorrência principalmente de operações militares malsucedidas. Na Ucrânia, 8 milhões deixaram o país.
Em que pesem o território dilacerado e o êxodo de civis, a Ucrânia pós-invasão conta a seu favor o fato de, pela primeira vez na história, ter cortado o cordão umbilical que a unia à Rússia e se transformado em país independente do poderoso vizinho. A bandeira azul e amarela é vista em toda parte e livros como A Porta da Europa — Uma História da Ucrânia, que exalta a identidade local, viraram best-sellers. “Se a Ucrânia não se defender, ela deixará de existir”, resume Anatoliy Tkach, encarregado de negócios do país no Brasil. Na reunião em Varsóvia, Biden saudou a resistência ucraniana e a tomada de posição do Leste Europeu contra o Kremlin — justamente os pontos a que Putin se apegou em seu discurso de quase duas horas contra o Ocidente em declínio (até a projeção da Igreja Anglicana de tratar Deus com pronomes sem gênero entrou na lista) e sua ameaça à Mãe Pátria. No final, anunciou a retirada russa do último tratado bilateral sobre armas nucleares.
Enquanto Biden alimenta alianças e compromissos na Europa, Putin faz de tudo para atrair a China para seu lado, após décadas de desconfiança mútua — em meio ao bate-boca simbólico às vésperas do aniversário da guerra, ele recebeu em Moscou o conselheiro de política externa chinês Wang Yi. Até agora, os chineses permanecem em cima da muralha, insistindo na tecla de que defendem a paz, mas a aproximação entre os dois autocratas mais poderosos do planeta ajudou a Rússia a se desviar das duras sanções que lhe foram impostas desde a invasão. A China precisa do petróleo e gás abundantes na Rússia, e os russos, sob embargo, dependem cada vez mais do voraz mercado chinês. “Pequim barganhou vantagens em sua parceria com a Rússia e avançou no tabuleiro global: compra matérias-primas a preços baixos e evita bater de frente com o Ocidente”, diz Salvatore Babones, cientista político da Universidade de Sydney, na Austrália.
Em meio ao balé das grandes potências, a guerra segue sem solução à vista. Pior: segundo analistas, ela pode estar entrando em uma fase ainda mais violenta. O fim do inverno deve acelerar ofensivas de ambos os lados. Soldados ucranianos recebem treinamento na Europa para manobrar tanques recém-adquiridos. Discute-se a possibilidade de caças americanos F-16 entrarem no confronto. Putin, por sua vez, aposta na expertise russa — os generais teriam aprendido com os erros — e no arrefecimento do interesse pela sorte da Ucrânia. Certo mesmo é que, um ano depois, invasores e invadidos não se falam. “Como nenhum lado admite concessões, os confrontos podem se arrastar por muito tempo”, antecipa Samuel Charap, cientista político do Rand Corporation, de Los Angeles. No planeta em mutação, não há fim de guerra à vista.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2023, edição nº 2830