Trump completa seis meses de mandato com reviravoltas na política e gestos imprevisíveis
Até agora, o presidente americano está se saindo assustadoramente bem, ao menos de seu ponto de vista

É um pássaro? Um avião? Não, é o “Superman Trump”. Assim, de modo ridículo, o site oficial da Casa Branca apresentou o presidente dos Estados Unidos na rede X um dia antes da estreia do filme da franquia do Homem de Aço. Depois da avalanche de mensagens negativas, os porta-vozes de Donald Trump tiveram de oferecer alguma resposta: “Não está na Constituição ser proibido postar memes que viralizam”. Não está, é verdade. Mas a tolice mal esconde o modo como o mandachuva pretende ser visto aos olhos do mundo: o dono de tudo, apinhado de poderes, capaz de pairar acima da humanidade. Nas palavras de sua bajuladora equipe: “O símbolo da esperança. Da verdade. Da justiça. Do estilo americano”. No mundo real, Trump está longe de ser essa unanimidade toda, mas é certo que, ao completar seis meses de mandato, o planeta, estupefato, contempla seus passos, aprovem-se ou não seus métodos. Tal qual o super-herói, ele agiu tão rápido, em tantas frentes, que paralisou as reações. Mostrou-se tão desafiador e disposto a tudo que, aos outros, restou encolher-se e, em muitos casos, tentar agradar-lhe (pelo menos até agora).
A postura agressiva impôs uma transformação profunda no status quo dentro e fora do país, a ponto de, em termos geopolíticos, ser possível separar o tempo em a.T. e d.T. — antes de Trump e depois de Trump. “Ele optou por fazer tudo, em todos os lugares, ao mesmo tempo”, diz James Lindsay, diretor do think tank Council on Foreign Relations. “Em poucos meses, desafiou ou mudou quase todos os aspectos da política externa e interna americanas.” Baixando decretos como se não houvesse amanhã, usando as taxações como letal arma econômica, esticando além do limite a resistência a determinações da Justiça contrárias a seus desígnios, Trump tem deixado claro, em gestos e palavras, a disposição de torpedear quem lhe desagrada.

Prova recente foi a carta enviada ao presidente Lula anunciando que pretende impor uma tarifa de 50% sobre as exportações brasileiras para os Estados Unidos com um argumento estapafúrdio: Jair Bolsonaro, seu par ideológico, processado por tentativa de golpe, estaria sendo submetido a uma “caça às bruxas”, e o Supremo Tribunal Federal, ao punir redes sociais por desacato, estaria ferindo “a liberdade de expressão dos americanos”. Que presidente sério, ao tratar com um país amigo, misturaria tributos e política no mesmo saco? Nenhum, mas Trump fez — em letras maiúsculas e tom de ameaça. “É claro que governos passados usaram pressão econômica para influenciar outros países, mas isso era feito de forma sutil, com aprovação do Congresso, em negociações diplomáticas”, afirma Marc Muendler, professor de economia da Universidade da Califórnia em San Diego. “A atitude de Trump é sem precedentes, de consequências ainda desconhecidas.”
Trump usou os quatro anos que passou longe da Casa Branca, à espera da reeleição, para montar uma equipe com a missão específica de organizar e definir estratégias na direção de uma mudança drástica no conteúdo e na forma de governar. A primeira palavra de ordem do novo tempo foi flood the zone (literalmente, inundar a área), tática que consiste em despejar um tal volume de informações, medidas e ações que quem está de fora, atordoado, não consegue reagir. A segunda foi invocar leis do passado distante e de momentos de exceção para justificar o terremoto político que tinha em mente — caso da Lei de Poderes Econômicos Emergenciais Internacionais, aprovada em 1977 para congelar contas e ativos de terroristas e nações inimigas que ameacem a segurança nacional. Essa é a legislação que baliza a ameaça trumpista de, em nome da contenção do déficit da balança comercial americana (“somos explorados por todos”, justifica), impor tarifas não só ao Brasil, mas à maioria dos países que fazem negócios com os Estados Unidos. O Canadá, com quem ele próprio assinou um acordo de livre comércio no primeiro mandato, levou 35% nas costas.

Outra legislação arcaica, a dos Estrangeiros Inimigos, aprovada em tempo de guerra (1798) para prevenir atos de espionagem, saiu do baú para sustentar a operação dos departamentos de Justiça e de Segurança Interna para expulsar “os 20 milhões de imigrantes ilegais” (na verdade, 11 milhões), na “maior deportação da história”. No mês passado, Trump chegou a acionar a Guarda Nacional e fuzileiros navais — 5 000 militares no total — para dar retaguarda a batidas na Califórnia, à revelia do governador democrata Gavin Newsom. A meta é prender 3 000 pessoas por dia e 1 milhão por ano. O alvo declarado são indocumentados com ficha criminal, mas agentes armados e mascarados do ICE, a polícia de imigração, têm dado incertas em locais de trabalho típicos de ilegais, como fazendas, canteiros de obras e pracinhas cheias de babás, e levado todos que não têm documento. A notória prisão de Guantánamo, em Cuba, foi preparada para deter 30 000 imigrantes. A “Alcatraz dos jacarés”, na Flórida, recém-inaugurada e visitada por Trump, fica no meio de um pântano infestado deles. A espetacularização das deportações desencorajou a entrada: apenas 6 000 apreensões foram feitas na fronteira em junho, o menor número desde os anos 1960. Trump também acabou com a concessão de asilo a refugiados, peça indissociável do ideal americano — a.T., claro.
Durante o primeiro mandato, o presidente costumava reclamar do trabalho que dava aprovar leis no Congresso. “É um sistema rudimentar, arcaico”, afirmou em 2017. O Trump de agora optou por dispensar o sistema. Tendo tomado posse em 20 de janeiro, ele assinou 54 decretos presidenciais antes do fim daquele mês e, de lá para cá, afora o seu “grande e lindo projeto” orçamentário aprovado graças ao voto de minerva do vice, JD Vance, demonstra pouco ou nenhum interesse na Câmara e no Senado. Mesmo tendo maioria nas duas casas e controle praticamente total do Partido Republicano, prefere resolver tudo com canetadas — já foram 170, praticamente uma por dia. “Ele está extrapolando os limites do poder presidencial sem muita resistência”, diz Richard Bensel, cientista político da Universidade Cornell.

Esse é o modus operandi para fazer o que bem entende: passar o rolo compressor na burocracia federal; castigar rivais; expulsar imigrantes; e, claro, distribuir tarifas — embora, neste ponto, já tenha voltado tanto atrás (segundo ele, uma tática de negociação) que ganhou nas redes o apelido TACO (sigla para Trump always chickens out, ou “Trump sempre volta atrás”, numa tradução livre). A despeito de alguns recuos, o saldo impressiona: desde que assumiu, a taxa média efetiva de tarifas dos Estados Unidos subiu de 2,5% para 16,6%, de acordo com o acompanhamento do Budget Lab da Universidade Yale. A conta pode chegar a 20,6% se entrarem em vigor as novas tarifas prometidas para 1º de agosto. Um mau resultado, contudo, já brotou no horizonte imediato: a inflação no país interrompeu um quadro de estabilidade e escalou 2,7% em junho, a maior marca dos últimos cinco meses. Os setores mais afetados são justamente os expostos aos novos impostos, como eletrodomésticos e vestuário.
O Judiciário, garantia contra o autoritarismo na democracia mais longeva da civilização, tem sido frequentemente acionado para conter a enxurrada de ordens executivas, mas a Casa Branca costuma ganhar nas instâncias superiores. A Suprema Corte, com maioria conservadora de 6 a 3, analisou quinze pedidos de emergência para ampliar os poderes do Executivo em 2025 e deu sentenças favoráveis ao presidente doze vezes. Na mais consequente delas, relativa à proteção da cidadania americana de filhos de ilegais nascidos nos Estados Unidos — direito que o governo quer abolir —, determinou pela primeira vez que juízes de instâncias inferiores não podem bloquear ordens presidenciais em todo o território nacional, ainda que flagrantemente inconstitucionais, embora tenha aberto exceção a ações movidas por associações, como a que acaba de ser acatada por um juiz de New Hampshire. É nítida a intenção do governo de estabelecer como regra que decretos executivos não são passíveis de escrutínio pelo Legislativo e pelo Judiciário, um passo decisivo na direção do regime autoritário que Trump abertamente admira. “O acatamento dos tribunais está no cerne do respeito ao estado de direito, algo que autocratas como Vladimir Putin, na Rússia, e Viktor Orbán, na Hungria, ignoram. Vivemos um momento perigoso”, disse a VEJA Lee Bollinger, expoente do direito constitucional e ex-reitor da Universidade Columbia.

No campo dos direitos civis, o governo Trump promove uma cruzada retrógrada contra avanços que pareciam estabelecidos e irrefutáveis. Com base em uma decisão da Suprema Corte, no ano passado, que proibiu sistemas de cotas nas universidades por considerá-los discriminatórios, uma série de decretos presidenciais tenta acabar com todo e qualquer programa de diversidade, equidade e inclusão (DEI) nos país e até fora dele. Órgãos públicos não podem contratar empresas que o adotem, instituições de ensino são pressionadas a abandoná-lo e, no exterior, as embaixadas advertem as indústrias locais que aderem ao DEI que terão dificuldades em fazer negócio nos Estados Unidos. O resultado é uma autocensura generalizada. No setor corporativo, Meta, Amazon e Walmart, por exemplo, mudaram suas políticas de RH ao primeiro sinal de desaprovação do presidente. Políticas de diversidade, ao lado de acusações de antissemitismo, são os principais instrumentos do governo para encostar na parede as universidades de elite, exigindo que se alinhem aos princípios trumpistas. Harvard, um dos maiores centros de conhecimento do mundo, teve suspensa toda a verba federal, de mais de 1 bilhão de dólares, e tenta na Justiça um acordo com a Casa Branca.
É esperado que um governo centralizador, que passa por cima do Congresso e do Judiciário, não dê bola para as amarras dos acordos de cooperação multilateral. “Trump não faz distinção entre aliados e inimigos. Só importa o que podem oferecer”, diz Stefan Wolff, professor de segurança internacional na Universidade de Birmingham. Na linha de desconstrução do multilateralismo, tirou os Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde, abandonou o Acordo de Paris e virou as costas ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, acusando-o (com uma dose de razão) de ser anti-Israel e palanque para ditaduras. De quebra, em gesto sobejamente criticado, desmantelou o USAID, órgão criado na década de 1960 que respondia por 40% da ajuda humanitária mundial.
No balcão de negócios do governo Trump, terreno movediço e súbitas mudanças de rumo são trunfos para extrair concessões. “Ele elevou a imprevisibilidade ao status de doutrina”, diz Peter Trubowitz, da London School of Economics. Nesse sistema em que prevalece a lei do mais capaz constituiu-se uma nova hierarquia de poder. Os Estados Unidos, desnecessário dizer, estão em primeiro lugar. Em seguida vêm os países com recursos a oferecer e líderes alheios à estrutura de pesos e contrapesos da democracia: Vladimir Putin, que quer restaurar a Rússia como grande potência imperial; Mohammed bin Salman, o príncipe saudita, que quer liderar uma modernização no Oriente Médio; e Xi Jinping, que deseja um mundo adequado para uma China forte. Em terceiro lugar na lista estão os antigos aliados dos Estados Unidos, cuja dependência e lealdade são vistas como fraquezas a serem exploradas.

No jogo geopolítico que se redefine, a Europa, escanteada, tenta se mexer para preservar sua relevância, mas, pressionada ela também por anúncios de tarifas e interferência em seus assuntos internos, tem mais cedido do que feito frente a Trump. Depois de repetidas ameaças de deixar a Otan, a aliança militar ocidental, e de pôr em dúvida seu compromisso com o Artigo 5 (aquele que obriga todos os 32 membros a reagirem se um deles for atacado), o presidente americano arrancou dos europeus a promessa de investimento de 5% de seus PIBs em defesa até 2035, retirando de Washington o ônus da proteção. “Trump busca vitórias de curto prazo, favorecendo-as em detrimento de processos longos e complicados”, diz Natasha Lindstaedt, da Universidade de Essex. No início da semana, ele voltou seu canhão de tarifas para a Rússia e ameaçou taxar os produtos do país em até 100%, caso Vladimir Putin não ponha fim à guerra contra a Ucrânia dentro de cinquenta dias. Mesmo com o prosseguimento do confronto, porque é briga de cachorro grande, já conseguiu fechar um acordo generoso para empresas americanas explorarem o subsolo ucraniano. No Oriente Médio, onde ainda espreme Israel para aceitar uma trégua com o Hamas, fortalece os laços comerciais com os potentados do Golfo Pérsico.
Em outras áreas, o rolo compressor trumpista segue impávido, colhendo frutos. As tarifas impostas até agora, uma marolinha no tsunâmi prometido, despejaram quase 100 bilhões de dólares nos cofres americanos até julho, 110% a mais do que em igual período do ano passado. Na máquina pública, 60 000 foram dispensados e outros 75 000 aceitaram pacotes de demissão voluntária. Aviões de imigrantes deportados levantam voo a todo instante, para várias partes do mundo. Desafiando as incertezas e os prognósticos negativos, inflação, crescimento do PIB e desemprego estão sob controle. Não houve grande abalo nem com a oscilação negativa dos índices de popularidade nos últimos meses (54% desaprovam, 41% aprovam o governo, segundo a mais recente pesquisa). Ainda restam três anos e meio de mandato e o primeiro teste de verdade será em novembro de 2026, quando haverá eleições legislativas. Mas, até agora, Trump está se saindo assustadoramente bem, ao menos de seu ponto de vista. E não há kryptonita que o faça ceder.
Publicado em VEJA de 18 de julho de 2025, edição nº 2953