Retorno às origens: os primeiros lances da política externa de Biden
Movimentos iniciais mostram que o presidente quer restaurar a ordem e a normalidade nas relações com os outros países, que Trump fez questão de implodir
Após quatro anos de política externa errática, patinando entre o confronto aberto com uns poucos países, a indulgência com outros tantos, o desdém em relação a velhos aliados e a total indiferença para com a maioria, os Estados Unidos voltam a ser o que eram: uma potência econômica e militar que cuida de seus interesses acima de tudo, mas dentro de um leque de atitudes e referências conhecido e, na maior parte do tempo, civilizado e democrático. Em seu ainda curto tempo de governo, o presidente Joe Biden já deu ampla mostra dessa virada e acentuou a mudança de percurso nos últimos dias em movimentos dirigidos justamente a “amigos do peito” de Donald Trump. Vladimir Putin, da Rússia, por quem Trump nutria aberta admiração, Mohammed bin Salman, o príncipe saudita a quem todos os pecados eram perdoados em nome de bons negócios, e o esquerdista Andrés Manuel Lopéz Obrador, do México, com quem o ex-presidente firmou a premissa de “eu não piso no seu calo e você não pisa no meu”, tomaram conhecimento, com poucos dias de diferença, do que esperar da Casa Branca: menos complacência e mais cobrança.
Pondo fim à apatia da era Trump diante da escandalosa tentativa de envenenamento do oposicionista russo Alexei Navalny pelo serviço secreto de Putin no ano passado, a Casa Branca condenou a ação, colocou-a na conta da FSB (novo nome da antiga KGB) e anunciou o bloqueio da emissão de visto americano e de transações financeiras de sete funcionários do Kremlin. São todos de menor escalão, mas foi melhor que nada — e, de quebra, Biden se posicionou ao lado dos governos europeus, com quem precisa remendar laços esgarçados por Trump. Em outra frente, horas depois da divulgação de um relatório baseado em informações da CIA que incrimina definitivamente Bin Salman, o mandachuva saudita, no assassinato do jornalista Jamal Kashoggi, Biden falou ao telefone não com ele, mas com o pai, o adoentado rei Salman, e bateu em teclas diversas: de um lado, reiterou a importância dos direitos humanos; de outro, fez agrados ao cliente preferencial da indústria de armamentos dos Estados Unidos e aliado essencial no volátil Oriente Médio. “A intenção é recalibrar nossos laços com a Arábia Saudita”, declarou.
Biden começou a desmontar a fileira de mágoas externas assinadas por Trump logo nos primeiros dias de governo, ao recolocar os Estados Unidos nas negociações do Acordo do Clima de Paris e na Organização Mundial da Saúde. Em um movimento calculado, mostrou-se disposto a retomar as conversas sobre um acordo nuclear com o Irã — hoje o terreno mais explosivo no Oriente Médio — e, pouco depois, ordenou o bombardeio de milícias pró-Irã em território sírio, em represália a um ataque anterior em que americanos morreram. “A nova administração deve optar por interferir na questão iraniana por meio da pressão nos organismos internacionais e através do multilateralismo”, diz o ex-embaixador do Brasil em Washington Rubens Barbosa. Ou seja: como era antes. “A população americana não quer mais guerras, e Biden sabe disso”, acrescenta Barbosa.
Com López Obrador, o telefonema foi cauteloso. O presidente esquerdista, para surpresa geral, amarrou um pacto de cooperação com Trump e foi o penúltimo governante, atrás só de Jair Bolsonaro, a cumprimentar Biden pela vitória. López Obrador ouviu do colega americano que os Estados Unidos não vão interferir nos assuntos internos do vizinho e contam com uma colaboração mútua para solucionar os problemas de fronteira e melhorar as condições dos imigrantes. “Não temos sido bons vizinhos, mas agora vemos o México como um igual”, declarou, um tanto hiperbolicamente, mas diplomacia é assim mesmo. “Parte do que Trump fez não será desfeita facilmente. Mas é um bom sinal ver seu sucessor disposto a fortalecer a cooperação internacional, em vez de enxergar inimigos em diplomatas e estrangeiros”, diz Max Paul Friedman, professor de relações internacionais da American University. Depois do trator Trump, a nova velha política externa americana é uma lufada de bons ares.
Colaborou Amanda Péchy
Publicado em VEJA de 10 de março de 2021, edição nº 2728