Por que cresce a procura pelos buldogues franceses
Esnobados pelos ingleses no passado, eles se tornam populares graças a um mecanismo psicológico de ver nesses cãezinhos traços, digamos, humanos
A relação da espécie humana com os cães volta mais de 20 000 anos no tempo e vem produzindo laços firmes e duradouros, em que, não raro, o dono e seu animal chegam a se assemelhar. As engrenagens que levam a cara de um a ficar o focinho do outro já foram destrinchadas e a ciência concluiu: existe um embasamento para essa sensação de familiaridade, seja no semblante, seja no temperamento, e ela tem a ver com um mecanismo que faz os caninos absorverem os trejeitos do homem a ponto de reproduzirem o seu olhar. Mas há outra razão, esta mais simples, para que tantas duplas se pareçam: as pessoas tendem a escolher, ainda que inconscientemente, raças afinadas com o seu jeito e estilo. E tal elo vai se aprofundando à medida que se domestica o cachorro. “Nós o criamos para ser o mais similar possível com a gente”, explica a americana Alexandra Horowitz, especialista em cognição canina e autora de Our Dogs, Ourselves. É justamente nesse caldo que o buldogue francês, com seus olhos generosos e focinho pequenino — algo humanizado, por assim dizer —, ingressou no rol dos cãezinhos mais populares do planeta.
Turbinada por celebridades como Reese Witherspoon, Leonardo DiCaprio e David Beckham, a raça registrou ao longo da última década uma subida na procura na casa dos 1 700%, e a curva segue embalada. Nas redes, um dos termômetros desta era, as hashtags #frenchie e #frenchielove vencem a de qualquer outro canino, e o preço naturalmente acompanha o interesse: alcança os 3 000 dólares, cifra que enche inclusive os olhos de ladrões, como os que surrupiaram Koji e Gustav, os cachorrinhos de face amassada da cantora Lady Gaga, felizmente recuperados em questão de dias. Algumas qualidades contemporâneas conspiram a favor desses cães, que no Brasil figuram entre os seis mais requisitados, de acordo com o levantamento do aplicativo DogHero. Uma delas é de cunho prático. “Eles têm comportamento tranquilo e se dão bem em ambientes apertados, como o de um apartamento”, diz o publicitário Thiago Graber, dono de Luna, 3 anos, um veterano no mundo animal.
Outro fator de magnetismo desses buldogues remete àquela ideia de que o homem busca um cão de algum modo parecido consigo mesmo. Um mergulho fundo no universo canino revela que eles, ao contrário de vários de seus pares de raças distintas, apresentam focinho acanhado, o rosto arredondado e os olhos centralizados em vez de concentrados nas laterais. Também esboçam um sorriso “vagamente humano”, segundo os anuários que descrevem a fisiologia canina. Evidentemente que não são a carinha de seus donos, mas reúnem características percebidas em insondáveis camadas do cérebro humano como “semelhantes”. “Isso tudo transcorre no terreno psicológico, que detecta familiaridades mesmo que elas não sejam óbvias”, ressalta a especialista Alexandra Horowitz, citando cachorros que desencadeiam o mesmo tipo de clique, entre eles boxer, shih tzu e buldogue inglês.
Em sua caminhada para encontrar um canino que acrescente componentes “familiares”, uma ala da espécie humana, sobretudo aquela que vive do mercado de cães, vem exagerando na dose. Essa turma envereda por reproduções que, no caso dos buldogues franceses, têm o objetivo de cruzar entre si os representantes da espécie de focinho já pequeno na tentativa de fazê-los ainda mais miúdos, um atributo que chama a atenção. Em dezembro, o braço britânico do Kennel Club, a mais antiga sociedade de cinofilia do mundo, se mexeu e atualizou suas diretrizes para a raça citando as consequências negativas da mão do homem sobre o processo evolutivo natural. “Precisamos evitar características extremas que exacerbem problemas de saúde desses animais”, assinalou o documento, atendendo a uma petição assinada por mais de 40 000 veterinários.
Fenômenos de uma indústria que só cresce, os buldogues franceses pertencem ao ramo das raças conhecidas como braquicefálicas, aquelas dos focinhos achatados e com pendor para síndromes respiratórias — daí ser ainda menos indicado tocar nesse órgão por onde o oxigênio vem e vai. “O Ralph não sofre de nenhum problema grave, mas exige mais cuidados”, conta o diretor financeiro Pedro Baldaque, que aprendeu, por exemplo, a não lhe dar grandes quantidades de comida em uma única tacada. Ralph e tantos outros da mesma raça têm como antecedentes os buldogues ingleses, o que se explica cavucando a história. Na Inglaterra do século XIX, os filhotes que não crescessem a contento eram rejeitados e acabavam sendo levados à França, onde foram passando por cruzamentos sucessivos até chegarem à forma atual dos travessos cãezinhos de não mais de 30 centímetros. Deu de caírem no gosto de pintores de grande quilate, como Toulouse Lautrec e Degas, que os retrataram em primorosas telas. À primeira vista, ninguém diz que esses cães contêm algum traço humano. Eles só afloram para valer quando as duas espécies consolidam o tal elo ancestral.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2022, edição nº 2774