Por que as empresas de tecnologia estão trocando a Califórnia pelo Texas
Com baixos impostos e poucas regras para a atuação empresarial, está formada a conjunção ideal para o Vale do Silício e arredores mudarem de ares
Conhecido pela mania de grandeza, por vastas reservas de petróleo e um bizarro apego a botas e chapéu de caubói, o Texas sempre foi visto como um estado conservador e tradicional, a antítese da moderna e progressista Califórnia. Pois agora, quem diria, estão trocando de lugar — as torres de petróleo texanas convivem cada vez mais com startups e gigantes do setor de tecnologia estão de mudança para lá. O movimento se acelerou na pandemia, período em que, quanto mais o governador californiano Gavin Newsom decretava lockdowns para conter o novo coronavírus, mais empresas tomavam o rumo do liberalíssimo Texas, onde o republicano Greg Abbott fincou o pé nas fileiras negacionistas de Donald Trump. Juntando a manutenção dos negócios abertos (apesar dos imensos riscos) com baixos impostos e poucas regras para a atuação empresarial, está formada a conjunção ideal para o Vale do Silício e arredores se transportarem, de mala, cuia e alta tecnologia, para o Texas. “Temos excelente ambiente para negócios e infraestrutura de nível global”, diz Robert Allen, presidente da Texas Economic Development Corporation, voltada para o desenvolvimento da região
Só no ano passado, duas big techs, a Oracle e a Hewlett-Packard, abandonaram a Califórnia rumo à vastidão texana. No caso da HP, a decisão teve um componente dos mais simbólicos: inaugurada em 1938, ela é considerada a pioneira do Vale do Silício. Também a Apple está construindo no estado, ao custo de 1 bilhão de dólares, seu segundo maior câmpus. A Amazon já abriu, ou planeja abrir, dois novos centros de entrega e dois galpões de distribuição, o maior deles com 75 000 metros quadrados. O Google e o Facebook programam expansões no estado e a plataforma chinesa TikTok está para definir em que cidade texana erguerá sua sede — no mínimo, uma ironia, visto que ela foi alvo da fúria do governo Trump por suspeita de repassar dados sigilosos americanos para a China.
Marqueteiro como poucos, o dono da Tesla, Elon Musk, também decidiu sair de vez da Califórnia — e batendo a porta. Em dezembro, anunciou que não só estava transferindo suas empresas para o Texas, como ele mesmo, o terceiro mais rico do planeta, com uma fortuna avaliada em 147 bilhões de dólares, estava de mudança para lá. Desde então vendeu suas quatro mansões em terras californianas e se instalou em Austin, a simpática capital texana, de onde supervisiona as obras da nova e monumental fábrica da Tesla, em uma área equivalente a 810 campos de futebol. Musk tornou-se um profeta da decadência da Califórnia, que considera atualmente um estado burocrático e inimigo do empreendedorismo. “Quando um time está ganhando há muito tempo, tende a ficar acomodado”, afirma.
O boom digital vem impulsionando o já portentoso PIB do Texas, que em 2019 alcançou 1,9 trilhão de dólares — 100 bilhões a mais do que o do Brasil, a nona maior economia do mundo. Em consequência de tamanha prosperidade, o fluxo de imigrantes de outros estados não para de aumentar: no ano passado, o Texas recebeu 374 000 novos residentes, um recorde (a Califórnia, ao contrário, teve pela primeira vez queda em sua população). Boa parte se fixou em Austin, que ganhou o bem-humorado apelido de Silicon Hills. A economia texana é praticamente livre de regulações, inserida no conceito de não interferência do Estado defendido pelo Partido Republicano, que tem lá seu principal colégio eleitoral. Além disso, o Texas vive com os cofres cheios de petrodólares, o que lhe permite praticar uma política tributária agressiva, com isenções e subsídios para atrair empresários — o exato oposto da Califórnia, sede dos mais altos tributos do país. O custo de habitação segue razoável, ao contrário do que ocorre na Califórnia, onde regras de zoneamento duríssimas dificultam a construção de edifícios. Segundo cálculo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), o custo de moradia na Califórnia é 60% maior que no Texas. “Ficou impossível comprar casa. Em São Francisco, o preço médio bate em 1,6 milhão de dólares”, diz Larry Gerston, cientista político da San José State University.
Um efeito da transposição de californianos progressistas para o conservador Texas é uma nítida virada no xadrez político americano. Por causa da redução da população, a Califórnia, reduto democrata, perdeu uma cadeira no Congresso. O republicano Texas, por outro lado, ganhou duas. Mas a chegada de jovens egressos do Vale do Silício tem resultado em seguidas eleições de democratas nas grandes metrópoles, como Houston, Dallas e San Antonio. Inconformados, texanos de raiz cunharam um slogan que transforma o estado rival em verbo: “Não californie o meu Texas”. Pelo andar da carruagem — que, nos filmes de faroeste, sempre faz alguma parada em uma cidade texana de lá —, vai ser impossível conter a invasão.
Publicado em VEJA de 02 de junho de 2021, edição nº 2740