Pecado capital: apuração de crime financeiro é marco no Vaticano
O papa autoriza a ida de um cardeal a julgamento por participação em esquema de propinas e desvios de dinheiro
Avesso durante séculos a trazer à tona os escândalos em suas dependências, o Vaticano está mostrando que, de fato, mudou sob a liderança do papa Francisco, promotor da transparência nas investigações sobre a cúpula da Igreja. No início do mês, Francisco em pessoa deu seu aval para o indiciamento formal do cardeal Angelo Becciu, de 73 anos, ocupante de cargos de alto nível na hierarquia da Santa Sé e considerado seu amigo próximo e de mais nove pessoas — todas elas ligadas a um esquema de propinas e desvio de dinheiro que causou prejuízo de milhões de euros às finanças da cidade-Estado. O julgamento está marcado para 27 de julho e envolve desde a aquisição de um prédio comercial em área nobre de Londres até comprinhas em lojas de grifes de luxo, como Prada e Louis Vuitton.
Acusado de peculato, lavagem de dinheiro, fraude e abuso de poder, Becciu atuou durante anos como primeiro vice-diretor do Secretariado do Estado, que administra boa parte dos vastos recursos do Vaticano. Saiu em 2018, ainda prestigiado: assumiu o comando da Congregação para as Causas dos Santos, que supervisiona processos de canonização. No fim do ano passado foi finalmente afastado de todas as suas funções e perdeu também privilégios concedidos a cardeais — um rebaixamento raríssimo. O próprio Becciu, proclamando inocência, revelou então que estava sendo investigado por suspeitas de pagamentos indevidos de 100 000 euros em contratos com empresas e instituições de caridade dirigidas por sua família na Sardenha, onde nasceu. Da mesma ilha saiu Cecilia Marogna, contratada como consultora em seu gabinete no Secretariado e acusada de desviar mais de 570 000 euros entre 2018 e 2019. Seguindo a pista das transações financeiras, a investigação mostrou que o dinheiro, proveniente de doações para a libertação de uma freira sequestrada na Colômbia e de missionários apreendidos na África, entre outras causas meritórias, foi usado para pagar contas em spas de alto nível e lojas de artigos de luxo.
O grosso da acusação, porém, não foi citado pelo cardeal. Trata-se do suspeitíssimo investimento de recursos procedentes de um fundo alimentado por contribuições de fiéis em um prédio comercial em Londres, negócio em que apenas um dos intermediários, o italiano Gianluigi Torzi, recebeu 15 milhões de euros, supostamente apelando para extorsão. Em nota enviada a VEJA por seus advogados, o cardeal afirma ser “vítima de uma conspiração” que o expôs a “ataques sem precedentes na mídia”, mas a fé lhe permite “encontrar forças para lutar pela verdade” e, no tribunal, surgirá a comprovação da “absoluta falsidade das acusações”. “É até difícil avaliar o significado desse julgamento. Jamais um cardeal foi levado ao banco dos réus por questões financeiras. E o caso está começando”, diz o pesquisador J.D. Flynn, da Escola Dominicana de Filosofia e Teologia, na Califórnia.
O Vaticano divulgou em junho a revisão mais abrangente das leis da Igreja Católica nos últimos quarenta anos, envolvendo uma seção inteira do Código de Direito Canônico, um conjunto de sete livros com cerca de 1 750 artigos. Embora a maioria das mudanças se refira a situações em que clérigos abusam de menores e adultos vulneráveis, um fosso repleto de acusações que explodiram nos últimos anos, parte da reforma define explicitamente punições mais rigorosas para crimes financeiros. Em sua cruzada contra propinodutos nos seus domínios, o papa Francisco também está exigindo maior transparência na administração de fundos como o que enrolou Becciu e proibiu que funcionários aceitem presentes de mais de 40 euros. Agora, é rezar para não cair em tentação.
Publicado em VEJA de 21 de julho de 2021, edição nº 2747