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Passatempo: fazer vinhos

O homem mais rico da Argentina, dono de rótulos produzidos em seis países, montou no Uruguai uma vinícola considerada uma das melhores do mundo 

Por Fernanda Thedim, de Pueblo Garzón
Atualizado em 4 jun 2024, 16h20 - Publicado em 4 jan 2019, 07h00

O bilionário argentino Alejandro Pedro Bulgheroni tem mais de vinte cidades cadastradas no aplicativo de previsão do tempo de seu celular. Por um bom motivo: vira e mexe, precisa embarcar em um de seus jatinhos e ­voar para algum dos seis países, nos quatro cantos do mundo, onde produz vinhos. Em uma década, Bulgheroni, de 75 anos, o homem mais rico da Argentina, com uma fortuna estimada em 2,6 bilhões de dólares, adquirida com os negócios da família no ramo do petróleo, ergueu uma vinícola do zero em uma região remota do Uruguai e comprou mais doze propriedades, inclusive em áreas de tradição secular, como Bor­deaux, na França, e Toscana, na Itália.

Do Velho ao Novo Mundo, as propriedades de Bulgheroni abrangem rótulos de chianti, brunello, cadillac, malbec, tannat e cabernet sauvignon e produzem cerca de 1 milhão de garrafas por ano. E vem mais por aí: ele está buscando terras na Espanha para incluir a uva tempranillo em sua carta de vinhos. “Quanto mais projetos a pessoa tem, menos ela envelhece”, explica o discreto dono da Bodega Garzón, apontada como a melhor do Novo Mundo em 2018 pela revista americana Wine Enthusiast. “O projeto da vinícola é um dos mais arrojados do planeta, e Alejandro não poupou dinheiro, sabendo que nunca o verá de volta”, diz o crítico de vinhos brasileiro Marcelo Copello.

Bulgheroni não revela quanto já investiu em seu, digamos, hobby. “Muito”, limita-se a repetir, enquanto toma o cafezinho depois do almoço servido pelo chef-celebridade Francis Mallmann, conterrâneo, amigo de longa data e responsável pelo restaurante da vinícola uruguaia. Ao longo da refeição, ele afastou para o canto do prato o vinagrete servido sobre um generoso filé com batatas. “Pimentão e cebola crua não fazem bem para o meu estômago”, justifica, antes de cruzar os talheres, deixando metade da carne intocada. “Estava muito bom, mas vou esperar a sobremesa. Meu ponto fraco sempre foram os doces”, diz. E comprova: do creme com avelãs, frutas vermelhas e vinho do Porto, versão de Mallmann para o clássico zabaglione italiano, não restou vestígio. “Sou daqueles que passam doce de leite em tudo”, confessa. Em compensação, o café é com adoçante. “Preciso cuidar da alimentação porque ainda quero viver muito”, avisa o empresário, que começou a trabalhar aos 22 anos na empresa da família, enquanto estudava engenharia industrial na Universidade de Buenos Aires.

Ele não informa, porém a estimativa do mercado é que já tenha investido mais de 1 bilhão de dólares em seu império do vinho. “Petróleo é para ganhar, vinho é para gastar”, brinca, mas não muito, o magnata, que mora em Buenos Aires e fica pelo menos quatro meses por ano no Uruguai. Só na Bodega Garzón, sua menina dos olhos, o investimento passa com certeza dos 85 milhões de dólares divulgados oficialmente — especula-se que chegue a 200 milhões. As terras que abrigam a bodega são vizinhas à casa de campo de Bulgheroni em Pueblo Garzón, aldeia de 2 000 habitantes a 75 quilômetros de Punta del Este.

A propriedade foi adquirida com o objetivo de montar nela um parque ­eólico — o vento é hoje a principal fonte de energia elétrica do Uruguai. Mas Bettina, a bela segunda mulher do empresário, apresentadora de um programa na TV argentina, vetou o projeto. Não lhe agradou a ideia de abrir a janela e deparar com as pás em movimento na paisagem. O vinho se tornou o plano B, isso numa época em que Bulgheroni nem sequer ingeria bebida alcoólica. “Quando me casei com Bettina, ela não gostava do cheiro de bebida, e eu passei vinte anos sem tomar nada”, lembra. “Agora não tem jeito: preciso provar tudo. Afinal, é trabalho”, diz.

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vinhos Uruguai
INOVAÇÃO – Vinhedos no Uruguai: lotes voltados para direções diferentes (Rodrigo Guillenea/.)

A Bodega Garzón faz parte da Agroland SA, conglomerado agrícola de 10 000 hectares que, além de vinho, produz azeite, leite, mel e oleaginosas. Bulgheroni dedica só uma parcela de tempo a seus negócios uruguaios e à vinicultura em geral. Ainda bate ponto regularmente na PAE, abreviação de Pan American Energy, a maior empresa de petróleo da Argentina. Em sociedade com a britânica BP, ele tem os direitos de exploração do mais vasto campo petrolífero do país, Cerro Dragón, na Patagônia — e um currículo de denúncias de suborno que, além de originar processos que tramitam na Justiça argentina, pôs a petrolífera no radar de suspeitos do Fed, o banco central americano.

Quando Bulgheroni decidiu montar a Bodega Garzón, o primeiro passo foi procurar o amigo Carlos Pulenta, um dos grandes nomes do vinho de Mendoza, o centro da vinicultura da Argentina, que por sua vez o apresentou ao enólogo italiano Alberto Antonini, ­entusiasta das novidades tecnológicas na produção de vinhos de qualidade que estão atraindo investimentos no mundo todo. Antonini aprovou o terreno granítico e a brisa constante do Atlântico em solo uruguaio e deu início em 2008 a uma plantação inovadora: como a propriedade é acidentada, as parreiras foram dispostas em pequenos lotes com até 1 000 plantas, cada um voltado para uma direção, formando uma espécie de colcha de retalhos para quem vê do alto. “Variados níveis de umidade, exposição solar e características do solo geram vinhedos diferentes entre si, assim como vinhos”, explica o engenheiro agrônomo de Garzón, Eduardo Félix.

A moderna bodega uruguaia conta com equipamentos que selecionam as uvas por cor, tamanho e variedade com o uso de tecnologia óptica e tanques ovais de cimento para fermentação trazidos de navio da Itália, ao custo de 50 000 euros cada um — a vinícola tem vinte. “Quando chegaram, era como se a gente estivesse vendo o motor de uma Ferrari”, compara o chileno Christian Wylie, CEO da Bodega Garzón. Com paredes espessas, os tanques garantem temperatura constante mesmo nos altos picos de calor gerados pela fermentação e mantêm o vinho exposto a uma quantidade de oxigênio menor do que a dos tradicionais tonéis de madeira e aço inox. À venda no mercado brasileiro, os rótulos da bodega uruguaia custam de 80 a 1 100 reais — este, o preço do Balasto, o corte premium da vinícola, situado pela crítica especializada entre os melhores de 2018 (veja a avaliação no quadro abaixo).

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Aberta aos turistas que visitam a região, 80% deles brasileiros, a futurista bodega foi construída à moda politicamente correta, seguindo conceitos de sustentabilidade. Tem telhados “verdes” (cobertos de plantas), sistema de captação da água da chuva para irrigar as vinhas e soluções de iluminação que proporcionam até 40% de economia de energia. Ao lado do modernoso prédio com paredes de vidro, onde fica o restaurante, ainda funciona um clube privativo para milionários cuja taxa de adesão custa 200 000 dólares. E o campo de golfe tem nível profissional. “Só não jogo bem porque não tenho tempo de praticar”, despista o magnata, que torce para o Racing no futebol, gosta de séries de TV e costuma esquiar em Aspen, estação no Colorado onde tem casa. O próximo projeto é erguer um hotel de luxo na propriedade uruguaia com espaço reservado para seus hóspedes na praia de José Ignácio, o balneário rústico­-chique ao lado de Punta. Tudo harmonizado, claro, com os rótulos da Bodega Garzón.


‘Obrigação de ser bom’

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NO TOPO – Balasto 2016: a 1 100 reais no Brasil (Rodrigo Guillenea/.)

Balasto (em espanhol) é o nome dado ao solo de granito meteorizado da região onde fica a Bodega Garzón, no sul do Uruguai — e também à garrafa mais festejada (e cara) da vinícola do argentino Alejandro Bulgheroni. Para avaliar o Balasto safra 2016, VEJA convidou a sommelière argentina Cecilia Aldaz, formada na prestigiada Wine and Spirits School of London e hoje à frente da adega do restaurante Oro, no Rio de Janeiro. À temperatura ideal, ela provou a bebida, que alia quatro uvas originárias de lugares diversos da França, agora cultivadas em terras uruguaias: tannat (a favorita nesses lados da América do Sul), cabernet franc, petit verdot e marsenal. Cecilia achou o vinho encorpado, perfeito para acompanhar carnes de caça e molhos, e observou uma característica comum aos bons rótulos — uma agradável persistência na boca. Aos entendidos, ela esclarece que se sente algo de madeira junto a um evidente sabor frutado. Aos mais e menos letrados em enologia, pondera sobre o custo-benefício do Balasto, que pode sair a 1 100 reais no Brasil. “Nessa faixa, todo vinho tem a obrigação de ser bom, e esse cumpre a missão”, explica. “Mas ele entra em uma competição acirrada com franceses e italianos de altíssimo nível. Aí eu diria: vale para quem quer conhecer um vinho uruguaio como dificilmente se vê. É uma experiência.” A degustação seguiu com uma variação de preço mais suave, o Single Vineyard Tannat safra 2016, vendido a 199 reais por aqui. “É o que se espera de um bom tannat. Estruturado, equilibrado e aveludado”, diz Cecilia. Em linguagem mais terrena, a sommelière afirma que está tudo lá. “Violino, maestro, a orquestra completa”, compara. “Só falta um pouco mais de harmonia.” Entre os dezenove rótulos disponíveis na Bodega Garzón, há dois brancos. Cecilia testou e aprovou o Reserva Albariño 2018 (110 reais). Em suma, ponto para o Uruguai, que começa a se firmar no restrito clube de produtores de vinho de alta qualidade.

Publicado em VEJA de 9 de janeiro de 2019, edição nº 2616

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