Países facilitam entrada de turistas em busca de vacinação
Apesar do alto custo da viagem, há brasileiros na fila de embarque
Combinar uma temporada de férias com um curso de gastronomia, de línguas ou uma dieta radical em spa de luxo não é novidade. A pandemia, sempre ela, cria agora um nicho movimentado na combalida indústria de viagens: o turismo da vacina. Países onde a imunização avança rapidamente vêm sendo procurados por gente que mora em locais onde ela está atrasada — alguém pensou no Brasil? — e se dispõe a gastar muito dinheiro por uma picada. Os Estados Unidos, onde se começa a estimular visitas do gênero, estão no roteiro. A Rússia, que aprecia a entrada de dólares e euros, aceita sem reclamar. Já as Ilhas Maldivas, no Oceano Índico, vão mais longe: colocam a imunização no centro de uma campanha para atrair turistas. Não há erro ou ilegalidade em pegar o avião para se vacinar, embora a prática suscite questões éticas e, sobretudo, sanitárias. É sensato viajar enquanto o novo coronavírus está longe de ser controlado?
Para brasileiros, os Estados Unidos são o destino preferencial, mesmo tendo de encarar duas semanas de quarentena em algum outro país no meio do caminho. Os mais requisitados são México, República Dominicana e Costa Rica, que têm voos diretos partindo do Brasil. O pacote completo — sim, há agências que o oferecem — pode chegar a 50 000 reais, aí incluídas passagens aéreas e parada no hotel da quarentena, com diárias que variam de 250 dólares nos mais simples a 600 dólares em algum resort caribenho, mais o inevitável teste PCR e a estadia americana. Uma vez lá, o troféu que todos ambicionam é a vacina da Janssen-Johnson, de dose única. A maioria, no entanto, acaba tomando a da Pfizer, de aplicação mais frequente, tendo de aguardar 21 dias pela segunda dose — ou seja, um total de cinco semanas no exterior. Como brasileiro não desanima nunca, quem pode arrisca. “Ao todo, embarcamos de quinze a vinte viajantes por semana, frequentemente famílias inteiras. Eu mesmo acabei de ir”, conta o mineiro Frederico Fajardo, 50 anos, diretor da agência de turismo Fred Tour, de Belo Horizonte, que conversou com a reportagem um dia depois de ser imunizado em Miami, no fim de abril. Deu sorte — tomou a de dose única e menos de uma semana depois estava de volta a Minas Gerais.
O turismo da vacina anda tão em moda que há hotéis no México oferecendo, além do pacote de duas semanas iniciais, mais duas semanas extras em condições especiais caso o visitante seja infectado pelo vírus enquanto estiver no país. Mesmo com essa mamata, o empresário paulista Eder (que não quis revelar o sobrenome), 42 anos, preferiu cumprir o isolamento em Punta Cana, na República Dominicana, junto com a mulher e a filha pequena. Isolamento em termos: “Aproveitamos para conhecer algumas praias”, diz. O casal foi vacinado em uma farmácia na Flórida e aguarda a segunda dose, no fim de maio. Custo: 70 000 reais até agora.
A Flórida é desde o começo o porto de entrada mais procurado pelos turistas da vacina brasileiros. Em janeiro, o estado condicionou a aplicação do imunizante a um comprovante de residência, mas a exigência foi suspensa em abril — agora basta documento com foto, inclusive passaporte. De olho na receita que os ricaços estrangeiros adicionam à economia local, o governo autorizou a partir de agora a aplicação da vacina no próprio Aeroporto Internacional de Miami, a mesma medida adotada há algumas semanas no Alasca. Em Nova York, a prefeitura cogita instalar postos de vacinação para turistas em pontos conhecidos, como a Times Square e o Central Park.
Na Europa, onde só agora a imunização em massa começa a acelerar, a agência de viagens norueguesa World Visitor se especializou em levar turistas da vacina a Moscou, onde se toma a Sputnik V sem comprovação de residência. Por 1 200 euros (cerca de 8 000 reais), os interessados fazem duas viagens em um mês, uma para cada dose. Pagando 3 000 euros (20 000 reais), podem esticar a estadia e se hospedar durante 22 dias em um resort de luxo, com uma dose no começo e outra ao final da viagem. Segundo o dono da agência, Albert Sigl, cerca de 1 000 pessoas, sobretudo da Alemanha e da Suíça, os dois países europeus que mantêm voos para a Rússia no momento, se inscreveram para a viagem. “É o primeiro destino que oferecemos, mas não deve ser o último. Assim que algum outro abrir para esse tipo de turismo, entrará nos pacotes do nosso site. É um novo modelo de negócios”, explica Sigl.
A Rússia pretende implantar até julho um programa específico para turistas que desejam se vacinar, o mesmo projeto anunciado pelo Ministério do Turismo das paradisíacas Ilhas Maldivas. Mais de 50% dos 530 000 habitantes do arquipélago já receberam a primeira dose e, assim que os duplamente imunizados forem maioria, chegará a vez dos turistas, aguardados ansiosamente pelo governo para reabilitar o PIB local. Cuba é outro país que já sinalizou a intenção de brandir a Soberana 2, sua vacina na fase final de testes, como atrativo a estrangeiros de férias. A Sérvia, com excesso de imunizantes — até porque boa parte da população desconfia da eficácia deles —, abriu o acesso a não cidadãos por alguns dias em abril e filas se formaram nos postos. Viajando pela Europa em esquema mochileiro — nada recomendável para a ocasião, aliás —, os universitários canadenses Alyssa Sutton, 26 anos, e Noah Guthrie, 23, viram aí a chance irrecusável de conhecer Belgrado e de se vacinar de graça. “Em uma semana, recebemos autorização do governo sérvio, pegamos um ônibus e tomamos a vacina”, diz Alyssa. O casal seguiu viagem, com planos de voltar em junho para a segunda dose. Neste nosso pragmático mundo novo, a vacina virou atração turística.
Publicado em VEJA de 19 de maio de 2021, edição nº 2738