“Os terroristas me perseguiram, mas nenhuma bala me tocou”
Fazendeiro nigeriano faz relato, no Brasil, sobre o ataque do grupo extremista islâmico Boko Haram contra sua vila em 2014
Cresci em uma família cristã no nordeste da Nigéria. Sou fazendeiro, tenho 38 anos, e minha mulher toca um mercadinho em nossa vila. Não conto quantos filhos tenho porque temo que sofram represálias do Boko Haram. Os rumores sobre a presença dos terroristas começaram a surgir mais ou menos como uma brincadeira de criança, em 2009. Diziam que grupos estavam sendo treinados para atacar as comunidades cristãs da nossa região. Pensávamos que aquilo não poderia ser algo sério.
Em reuniões com moradores de outros vilarejos, soubemos que o Boko Haram havia atacado locais de adoração dos cristãos e sequestrado pessoas. Foi aí que a gente notou o perigo. Uma vez que uma vila próxima fosse atacada, não haveria garantias de que a nossa seria poupada. Decidimos dormir nas montanhas e voltar para nossas casas pela manhã porque sabíamos que os ataques ocorriam à noite. Vivemos nessa rotina até junho de 2014, quando a montanha onde nos escondíamos foi atacada e, depois, a nossa vila. Eles talvez soubessem o que fazíamos.
Eu tinha decidido dormir em minha casa naquela noite. Por volta das 4 da manhã, ouvi sons de disparos ao longe. Ao sair de casa para ver o que estava acontecendo, percebi que estava ocorrendo um tiroteio. Subi em um muro e vi um grupo enorme de pessoas empunhando fuzis AK47. Os homens gritavam “o fim dos cristãos chegou para esta comunidade”, atiravam para todos os lados e cercavam o vilarejo. Eu sabia que corria perigo justamente por ser cristão. Comecei a rezar, mas algo dentro de mim dizia que aquela não era a minha hora de morrer.
Apesar do meu espírito ser forte, sou feito de carne. No desespero para me salvar, subi numa árvore e ali permaneci por um tempo. Mas, mesmo que os terroristas não me vissem lá, as balas passavam pelas folhas. Desci e, ao colocar os pés no chão, um foguete passou por cima de minha cabeça e atingiu a casa do meu vizinho. O som do impacto foi pesado, e a explosão formou uma nuvem de poeira. Meu Deus! Não acreditava no que estava vendo. Não sabia o que fazer em meio ao caos ao meu redor. De repente, meu corpo foi tomado pela vontade de sobreviver e corri para furar o cerco. Os terroristas me perseguiram, mas nenhuma bala me tocou e, pouco tempo depois, eles se cansaram e desistiram.
Fui parar em um campo de refugiados, que foi uma experiência devastadora. Era um descampado, não tinha nada, só terra. Todos ficavam deitados no chão, sem água, sem banheiro nem comida. Era possível ver que todos tinham perdido totalmente as esperanças. Pareciam dizer: “deixem-me morrer”. Minha família chegou somente uma semana depois. Passamos dois anos ali. Mas, já no primeiro, começou a chegar ajuda do exterior, como a da Portas Abertas e da Cruz Vermelha. O Exército passou a combater o Boko Haram e liberou vila após vila devido à pressão internacional. Um dia, avisaram que a minha comunidade tinha sido libertada. Decidimos voltar para casa.
Dois anos depois do ataque, vila estava parcialmente destruída e saqueada. Inscrições em árabe podiam ser vistas nos muros, mas nem quis saber o que significavam. Em minha casa, havia buracos de balas nas paredes, a televisão e os colchões foram levados, minhas roupas estavam amontoadas no meio da sala e surgiu uma geladeira que não era a minha. Fui convidado pela Portas Abertas a dar meu testemunho no Brasil. Aceitei porque acredito que aqui seja um país muito liberal e seria um desastre a perseguição chegar a um lugar onde há liberdade. Quando eu tinha 22 anos, tentei entrar na escola, mas matricularam os outros candidatos e me deixaram de fora. Naquele momento, eu comecei a sentir que não era bem-vindo por ser cristão. É muito ruim ser odiado. Eu vim dar meu testemunho aos irmãos do Brasil. O que está escrito na internet alguém pode manipular. Mas o meu testemunho é parte de mim.
Depoimento dado a Vinícius Novelli