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Onda de saques e crise econômica: o novo capítulo do tango argentino

A eleição presidencial de outubro parece ser incapaz de resolver os problemas

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h09 - Publicado em 2 set 2023, 08h00

A Argentina, uma vez mais, como se os momentos ruins fossem destino atávico, vive dias de um melancólico tango. A atual onda de saques que se espalhou pelo país soa como inevitável desdobramento de uma progressiva degradação econômica e social. Inevitável porque, nos últimos anos, sucessivos governos atrelados ao populismo político cederam à tentação de gastar mais do que a economia é capaz de sustentar. Só poderia dar errado. Resultado: inflação acelerada e um processo de perda de renda tão agudo que deixaram 40% da população abaixo da linha de pobreza.

Às vésperas das eleições presidenciais, marcadas para outubro, as invasões nos supermercados inflamam a disputa, que, segundo as mais recentes pesquisas, deve ocorrer entre o ministro da Economia, Sergio Massa, representante de um governo que se orgulha de ser perdulário, e Javier Milei, o ultradireitista que promete pôr tudo de cabeça para baixo, sem explicar como pretende viabilizar suas propostas — inclusive a estupidez de decretar o fim do Banco Central e a repentina dolarização da economia. “Isso limitaria e submeteria a política monetária à dos Estados Unidos”, avalia Roberto Uebel, professor de relações internacionais da ESPM. O custo social também é alto. “O país passaria por uma mega desvalorização, a inflação subiria mais e haveria uma queda gigantesca nos salários”, diz Uebel, acrescentando que sequer há estoque da moeda para concretizar o plano.

O OPOSITOR - Milei, o líder nas pesquisas: promessas sem sentido
O OPOSITOR - Milei, o líder nas pesquisas: promessas sem sentido (Luis Robayo/AFP)

Os primeiros ataques ao comércio, em cenas de desespero, foram registrados nas províncias centrais de Santa Fe, Córdoba e Mendoza, mas logo se espalharam pelo sul, em Neuquén e Río Negro — ali, a cidade turística de Bariloche virou palco de baderna — até chegarem a Buenos Aires. O Ministério da Segurança registrou ao menos 150 tentativas de saques na área metropolitana, o que levou à prisão de 94 suspeitos. Calcula-se que, em todo o país, 200 pessoas tenham sido detidas. Há desconforto e medo, alimentados por acusações.

Como era de esperar, Milei, o líder nas pesquisas, apontou o dedo e sua cabeleira para o governo do peronista Alberto Fernández. “Pobreza e saques são duas faces da mesma moeda”, disparou na plataforma X. Patricia Bullrich, que tenta trilhar o caminho da direita moderada, não deixou por menos: “Como sempre, diante da desordem, o presidente Fernández e sua vice Cristina Kirchner brilham por sua ausência”, criticou a candidata, que foi ministra da Segurança de Mauricio Macri. Eles têm um ponto inegociável: a inflação promovida pelo governo come um décimo dos salários a cada mês.

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A Casa Rosada, contra-atacou alegando que os saques foram organizados no WhatsApp por apoiadores dos presidenciáveis da oposição. Foi a esquerda, no entanto, quem reivindicou os atos. Raúl Castells, um sindicalista que tem um histórico de promover invasões, veio a público para dizer que as pessoas “deveriam pegar o que quisessem para comer, contanto que não quebrassem nada”. A Massa restou juntar os cacos da combalida economia argentina e viajar para Washington com o pires na mão. Em reunião com o FMI, ele obteve uma liberação de 7,5 bilhões de dólares, como parte de um acordo de refinanciamento das dívidas. Diante do caos, o dólar disparou no mercado paralelo, sendo negociado a 728 pesos. Os economistas projetam uma explosão de preços de 180% até o fim do ano.

O GOVERNISTA - Massa, ministro da Economia: só lhe restou pedir esmolas
O GOVERNISTA - Massa, ministro da Economia: só lhe restou pedir esmolas (Matias Baglietto/NurPhoto/Getty Images)

Para além dos gabinetes engravatados, de tortas decisões e muito empurra-empurra, a população sofre nas ruas. O comércio passou a fechar as portas mais cedo e alguns itens de primeira necessidade se tornaram raros e caros. “Já não encontramos produtos como farinha e macarrão”, diz Mabel Tarrio, 83 anos, que mora em Castelar, na Grande Buenos Aires. “Lojas de roupas foram esvaziadas, o que deixa claro não ser apenas fome.” O clima lembra o de 2001, quando o então presidente, Fernando de la Rúa, promoveu a desvalorização do peso, seguida do confisco das contas-correntes dos cidadãos. A crise provocou mais de trinta mortes e só foi aplacada quando ele renunciou. Agora, alguns varejistas se mostram dispostos a responder à violência na mesma moeda. Circularam pelas redes vídeos de empresários exibindo pistolas e rifles, ameaçando atirar em quem participar do quebra-quebra.

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É espantoso — ainda que não seja surpreendente — ver a Argentina no fundo do poço. Na primeira metade do século XX, o país detinha o maior PIB per capita do mundo e crescia no ritmo de 5% ao ano, graças às exportações de carne e trigo para a Europa. “Quando o bônus agrário se esgotou, o projeto faliu, porque a Argentina não foi bem-sucedida na industrialização”, diz Eduardo Sartelli, professor da Universidade de Buenos Aires. O legado de um Estado provedor de bem-estar social, defendido até hoje pelos seguidores de Perón, o pai do populismo argentino, levou a um rombo incontrolável, em que os subsídios com luz e gás representam 82% do déficit fiscal. É tradição que o dito “anarcocapitalista” Milei promete pôr fim e que Massa prefere nem levar à mesa, para deixar como está. E lá vai a Argentina, no avesso de um gol de Messi, a caminho do precipício do qual não consegue se afastar. É pena.

Publicado em VEJA de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857

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