O verão dos hermanos: com preços camaradas, os argentinos invadem nossa praia
Todo ano, a situação do câmbio define se brasileiros vão passar as férias na Argentina, ou vice-versa. Neste ano está claro: a vantagem é deles

A gangorra é bem conhecida: ora o peso argentino se valoriza, o real despenca e multidões de turistas da Argentina cruzam a fronteira para uma temporada de lazer e compras no Brasil, ora as moedas fazem movimento inverso e aí são os brasileiros que lotam cidades, vinícolas e encostas nevadas do país vizinho. O vaivém está documentado pelo menos desde o Carnaval de 1954, quando a ocupação de Florianópolis foi tamanha que os hotéis, sem vagas, tiveram de improvisar. “Eles vão enfiando camas nos quartos já ocupados”, relata reportagem da finada A Gazeta naquele ano. Neste 2025, o pêndulo se inclina, mais uma vez, a favor das caravanas vindas do sul: enquanto em algumas praias catarinenses só se ouve castelhano na areia, em Mendoza, a joia do enoturismo argentino, a presença de brasileiros caiu 20% em relação a 2023. A situação atual do Brasil é a mais conveniente para os argentinos desde 2001. “Tchau, Villa Gesell. Olá, Rio de Janeiro”, brinca o economista Nery Persichini, da GMA Capital, citando a cidade balneária da Grande Buenos Aires preferida dos jovens nas férias.
A combinação que favorece os turistas argentinos neste momento é a de inflação elevada (2,2% em janeiro), apesar da redução drástica promovida pelo governo de Javier Milei, com desvalorização do peso em ritmo controlado de aproximadamente 1% ao mês. Como a perda de valor da moeda é mais lenta do que a alta de preços, o consumo em dólares ficou relativamente mais barato para os argentinos em geral e uma pechincha no Brasil, onde o real anda despencando. Resultado: aviões despejando argentinos em férias nos aeroportos brasileiros.
No quarto trimestre de 2024, refletindo a invasão da virada do ano, o número de turistas do país aumentou 33%, com o Rio Grande do Sul (85%) à frente, seguido de Santa Catarina (71%) e Paraná (17%). Portais e canais de TV argentinos ensinam como usar o Pix, o pagamento instantâneo brasileiro, que também vale para argentinos clientes de bancos digitais e foi imediatamente cooptado por eles. Tamanha é a onda que o secretário de Turismo, Daniel Scioli, ex-embaixador argentino no Brasil, sugeriu que o governo da cidade de Buenos Aires atrasasse a data de retorno das férias escolares para depois do Carnaval, para impulsionar o turismo doméstico. A proposta não foi bem acolhida por educadores, mas houve quem a apoiasse, é claro.
Ao assumir o governo, em dezembro de 2023, Milei baixou um tratamento de choque na economia, com aperto dos gastos públicos, cortes de subsídios estatais e reajuste de tarifas de serviços públicos. As contas públicas se equilibraram e a inflação caiu dramaticamente, a um alto custo social: mais da metade da população — 52,9%, ou 25 milhões de argentinos — se encontra hoje em situação de pobreza. A consultoria PriceStats calcula que, em janeiro, uma cesta básica de alimentos e combustível na Argentina estava 19% mais cara do que no Brasil. Quem ainda tem dólares ou pesos para viajar, porém, está aproveitando a conjuntura favorável para não só se divertir, como comprar tudo o que pode no Brasil. Nada que se compare à invasão dos anos 1990, quando Carlos Menem instituiu a paridade peso-dólar (veja a linha do tempo), mas, ainda assim, um movimento significativo.
Apenas em dezembro de 2024, 1,3 milhão de argentinos viajaram ao exterior, 76% a mais do que no ano anterior, sendo o Brasil seu principal destino, seguido de Uruguai e Chile. No mesmo período, o número de estrangeiros que visitaram a Argentina somou 951 000, um tombo de 25% em relação a 2023. E tome argentino fazendo a festa no comércio brasileiro, como no vídeo — que viralizou, claro — de uma multidão esvaziando as prateleiras da loja de material esportivo Decathlon em Florianópolis. “Há anos que a Argentina está cara, mas os preços no Brasil são chocantes”, diz o argentino Pedro Marín, que atraiu milhares de visualizações ao comparar uma lata de cerveja Patagonia vendida no Brasil a 8 reais, ou 1 500 pesos, e a 3 000 pesos em seu país.
Segundo Danniela Eiger, diretora de Varejo da XP, os preços aqui estão cerca de 60% abaixo dos de lá. Forte na Região Sul, onde foi fundada, a rede varejista Havan está batendo recordes só com as compras dos argentinos. A filial na parte norte da ilha de Florianópolis dobrou o faturamento em janeiro, atingindo 140% da meta estipulada. Não resta dúvida: nas constantes idas e vindas das ondas de turismo entre os dois países, o dame dos, estribilho dos brasileiros que compram tudo em dobro ou triplo quando o sol cambial brilha do lado de lá, este ano fez as malas e se instalou na boca dos argentinos que circulam por aqui.
Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2025, edição nº 2932