O vento virou: a vitória dos sociais-democratas na Alemanha
Resultado é um trunfo para a centro-esquerda europeia, que, após anos de sumiço, governa todos os países nórdicos. Sua bandeira: o meio ambiente
O partido mais antigo da Alemanha, o social-democrata SPD, passou as últimas décadas escanteado e condenado a servir de coadjuvante nos governos liderados pelos conservadores da União Democrata-Cristã, da chanceler Angela Merkel. Com a saída de cena dela e a instalação de um vácuo de poder, os sociais-democratas aproveitaram um eleitorado disposto a mudar as coisas sem chacoalhar as estruturas, firmaram uma imagem de Merkel rebobinada e se deram bem: venceram sua primeira eleição geral em quase vinte anos. Por muito pouco, mas venceram — tiveram 2 pontos porcentuais de vantagem sobre a CDU e seu partido gêmeo, o CSU, da Bavária.
O novo chefe de governo só será anunciado após as negociações para a formação de uma coalizão, o que pode demorar meses. Mas a ressurreição do SPD, além de comemorada por seus simpatizantes na Alemanha, reverberou com renovado vigor pelas fileiras da centro-esquerda europeia, despertada da letargia por uma série de votações que já puseram o conjunto dos países nórdicos de volta nos trilhos do estado do bem-estar social.
No saco de gatos das siglas europeias, os sociais-democratas alemães não têm muito em comum nem com a social-democracia escandinava, nem com os socialistas de Espanha e Portugal, nem com os trabalhistas do Reino Unido e outros países, embora todos façam parte do bloco esquerdista. Responsável por comandar a campanha do SPD, o líder do partido e candidato a chanceler Olaf Scholz, ex-ministro das Finanças e vice-chanceler de Merkel, começou a carreira entre os radicais, mas com o tempo foi mudando de lado e hoje se acomoda na ala mais à direita, a mesma que, no Parlamento, votou contra a expansão de benefícios sociais em nome do equilíbrio fiscal.
Na campanha, porém, defendeu uma política econômica menos rigorosa na distribuição de recursos na União Europeia e, uma vez ganha a eleição, negocia uma coalizão com os verdes, a terceira força política, o que garante que as questões climáticas estarão no topo da pauta de seu futuro governo. Pronto: foi suficiente para a esquerda fazer festa, após anos de declínio. “Se eleito, Scholz deve adotar uma posição centrista semelhante à de Merkel, mas podemos esperar mais investimentos no meio ambiente e na educação infantil”, diz Mark Hallerberg, presidente da Escola Hertie de Governança em Berlim.
A virada na política alemã não está 100% segura: se Scholz fracassar na formação de maioria, a tarefa passa para o segundo colocado, Armin Laschet, da CDU. Mas se tornou, de qualquer forma, a cereja do bolo do movimento iniciado nos países escandinavos — Dinamarca, Noruega e Suécia — e que se ampliou para abranger os nórdicos Finlândia e Islândia, colocando pela primeira vez em sessenta anos toda essa fatia da Europa nas mãos de governos de centro-esquerda, três deles comandados por mulheres.
Os mais novos membros do clube são os noruegueses, depois que a oposição liderada pelo trabalhista Jonas Gahr Støre venceu as eleições de 13 de setembro com uma maioria confortável, agitando com força total a bandeira da sustentabilidade. Adepto do aumento de impostos para os mais ricos, o futuro primeiro-ministro promete retomar o modelo clássico de social-democracia — uma vasta rede de benefícios sociais, da educação gratuita à saúde pública de qualidade, criado em resposta à depressão dos anos 1930. Sua vitória reflete o incômodo da população com a desigualdade social decorrente, sobretudo, do alto fluxo de imigrantes nos últimos anos. “A pobreza não é uma grande questão na Escandinávia, mas é evidente que, sob os conservadores, os ricos ficaram mais ricos e os demais se sentiram injustiçados”, avalia Haldor Byrkjeflot, sociólogo da Universidade de Oslo.
O furacão que está arrastando conservadores para a derrota e colocando progressistas no poder na Europa, porém, é a ameaça das mudanças climáticas, tema número 1 das campanhas políticas na Noruega e nos países à sua volta. Especialistas argumentam que ainda é cedo para anunciar uma predominância da centro-esquerda nos destinos do continente — embora esteja, de fato, ampliando seus domínios, ela ainda passa maus bocados em nações como França, Reino Unido, Áustria, Grécia e Holanda. “Na Espanha e talvez em Portugal a direita pode ganhar as próximas eleições. Além da Europa Ocidental, a direita também está bem enraizada na Hungria, Polônia, Eslováquia, Romênia e República Tcheca”, diz Fernando Casal Bertoa, professor da Universidade de Nottingham.
“As classes trabalhadoras tradicionais experimentaram uma reformulação nos últimos trinta anos, e uma das consequências dessa mudança foi deixarem de se organizar politicamente. Com isso, os sociais-democratas perderam uma grande base de apoio”, afirma Jan Rovny, cientista político da Sciences Po, em Paris. Tampouco os ajuda a fragmentação cada vez maior dos partidos no continente, que dificulta coalizões fincadas em ideologias. Salvar o meio ambiente é, nesse contexto, o ímã com que a esquerda moderada europeia espera atrair apoios e ter voz ativa.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2021, edição nº 2758