O que Trump não contava: ter que dividir holofotes com Elon Musk
O empresário ganhou poder para cortar custos, o que ele vem fazendo de forma polêmica

Parecia cena do programa de humor Saturday Night Live, dada a encenação, mas era real e aconteceu numa terça-feira. Donald Trump postou-se na resolute desk, a mesa de carvalho do Salão Oval, cuja madeira foi doada no século XIX pela rainha Vitória, da Inglaterra, e fez cara de presidente. Ao seu lado, estava o onipresente Elon Musk com o filho de nome impronunciável, X Æ A-Xii, no cangote e o indefectível boné com o slogan “faça os Estados Unidos grandes de novo”. Era uma cerimônia de assinatura do corte de milhares de cargos do governo americano, função designada ao magnata do X, e para a qual não foram convidados jornalistas da Associated Press. Eles foram barrados porque a empresa de notícias se recusou a chamar o Golfo do México de Golfo da América, como deseja o presidente.
A coreografia era uma clara resposta à capa da revista Time da semana passada, em que Musk aparece sentado na escrivaninha, resoluto, como se fosse ele o dono do poder no pedaço. Trump, é claro, não gostou — e de modo a mostrar que quem manda é ele, ponto, tratou de montar a cena. O republicano deu carta branca a Elon Musk para cortar custos, missão que vem sendo cumprida pelo empresário de forma polêmica. O que aparentemente não estava nas contas do chefe, ou pelo menos havia sido subestimado, era a possibilidade de ter que dividir holofotes com Musk.

O empresário gastou quase 280 milhões de dólares na campanha do republicano, criando uma loteria com prêmios em dinheiro para engajar apoiadores trumpistas. Vitorioso na estratégia, foi recompensado com a criação do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla em inglês). A autarquia não tem sequer status de ministério, mas obteve acesso a informações confidenciais da burocracia estatal e autoridade suficiente para desmantelar órgãos que são considerados “desperdício de dinheiro público”. Na primeira entrevista coletiva que deu ao lado do chefe, Musk justificou a medida como sendo necessária para reverter um déficit fiscal que não para de crescer e que atingiu 711 bilhões de dólares no último trimestre do ano passado. “As pessoas votaram neste projeto e vão receber o que prometemos. É disso que se trata a democracia”, afirmou.
Com mãos de tesoura, o bilionário já anunciou que pretende cortar entre 5% e 10% do funcionalismo público, estimado em 2,5 milhões de servidores. Por enquanto, porém, os alvos de Musk e sua turma — jovens com menos de 25 anos e nenhuma experiência em gestão pública — são as autarquias que entraram na mira por, supostamente, defender ideias liberais de esquerda. É o caso da USAID, a maior agência de ajuda humanitária do mundo, que está sendo simplesmente fechada, e do Departamento de Educação, que administra empréstimos estudantis. Os dois organismos são acusados de gastar dinheiro do contribuinte americano com projetos estapafúrdios mundo afora (exemplo: financiar viagens de modelos e estilistas de moda para desfiles em Nova York, Londres e Paris). Pior que isso, dentro da visão republicana: estariam a serviço da agenda woke, espalhando “extremismo climático” e “radicalismo de gênero”. A política de cortes divide a opinião pública americana, com alguma vantagem para a reprovação, segundo as pesquisas.
Ainda mais ruidoso foi o acesso franqueado ao DOGE dos dados estratégicos e protegidos do Tesouro Nacional, que no ano passado movimentou a astronômica cifra de 6,7 trilhões de dólares em pagamentos de salários, benefícios sociais e contratos com a máquina estatal. “Governo não é empresa”, diz Alex Thomas, do think tank britânico Institute for Government. “Partes que se desintegram podem levar a enormes perdas de dinheiro e até de vidas.” Musk, porém, não demonstra qualquer sinal de hesitação e replica no Estado o mesmo método de administração das empresas que controla, onde sua palavra é lei e quem não concorda com ela que peça o chapéu. Na calada da noite, os funcionários dos departamentos desmantelados foram informados por e-mail que seriam colocados em licença remunerada. Quem resistiu em fornecer informações ao DOGE, alegando falta de autorização do departamento para solicitá-las, acabou demitido ou afastado. A reação foi imediata: dezenove procuradores ligados ao Partido Democrata e diversos sindicatos promoveram uma enxurrada de ações na Justiça, na tentativa de estabelecer um freio no negócio. Um juiz de primeira instância atendeu ao pedido e suspendeu as atividades do órgão, mas a decisão final deverá ficar para a Suprema Corte.

Até o momento, a discussão jurídica do caso tem girado em torno do vínculo altamente informal que Musk mantém com o governo. Mas não são poucos os que alertam para conflito de interesses entre sua atividade pública e seus negócios privados. Embora Trump tenha garantido que “ele não tem nada a ganhar com isso”, há um mar de imbróglios das empresas de tecnologia da grife Musk com o poder público. A montadora de veículos elétricos Tesla, avaliada em 1,25 trilhão de dólares, está sendo investigada pelo governo em razão do sistema de direção autônoma de seus carros, que teria sido responsável pela ocorrência de treze acidentes fatais. A SpaceX tem mais de 15 bilhões de dólares em contratos com o governo e recentemente comprou confusão com a Nasa.
Em meio ao barulho, o homem mais rico do mundo ainda encontrou disposição para tentar adquirir a OpenAI, empresa dona do ChatGPT, em uma batalha que tende a terminar nos órgãos antitruste. “Quem o impede de usar dados sigilosos para prever mudanças econômicas, identificar vulnerabilidades do governo e modelar o comportamento do eleitor?”, indaga Allison Stanger, do Centro para Internet e Sociedade de Harvard. Nem Trump ousou tanto. Resumo da ópera: só mesmo o pequeno X Æ A-Xii, ingênuo, parece sincero na cena que marca um novo tempo.
Publicado em VEJA de 14 de fevereiro de 2025, edição nº 2931