O plano da Europa para deixar de depender do petróleo e gás russos
Estratégia exigirá um rearranjo internacional de rotas de suprimento e parcerias comerciais
Passados dois meses e meio de uma guerra que deveria durar dias, a Rússia, de um lado, e o resto da Europa mais Estados Unidos, de outro, rearranjam suas peças para, ao que tudo indica, acomodar um estado de conflito bélico por tempo indeterminado. No front, as tropas russas concentram seu poder de fogo ao longo da fronteira, traçando um corredor sob seu domínio com chance de se estender até o crucial porto ucraniano de Odessa, o que, se concretizado, extirparia um naco do território da Ucrânia e seu acesso ao Mar Negro. O avanço, no entanto, tem sido teimosamente contido pelos soldados da Ucrânia, armados com equipamento cada vez mais abundante e eficiente cedido pelo governo americano e pelos aliados, que apostam no eventual enfraquecimento e recuo de Vladimir Putin. Na diplomacia, uma nova rodada de sanções econômicas contempla chacoalhar uma relação até agora intocada: a mútua dependência da Europa em relação ao gás e petróleo russos e da Rússia para com recursos que esse comércio arrecada.
Em uma semana de intensa movimentação em Bruxelas, representantes da União Europeia discutiram detalhes da proposta de encerrar as importações de petróleo russo até o fim do ano. Em reunião virtual acompanhada pelo presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, o G7, integrado pelas maiores economias do planeta, também se comprometeu a aderir ao embargo. Se concretizada, a medida tem potencial para elevar os preços no mercado internacional e a inflação que castiga boa parte do planeta. “Há apenas dois meses, um bloqueio como esse seria considerado impossível”, afirma John Lough, especialista em segurança energética do Chatham House, de Londres.
Mesmo em guerra, a Rússia segue sendo a maior exportadora do planeta de petróleo bruto e refinado combinados, setor que representa 40% do PIB e é um pilar central da sua economia. Das exportações, 60% vão para a Europa, que recebe dos poços russos 27% de todo o óleo que consome — um laço comercial tão essencial que, com invasão e tudo, de 24 de fevereiro para cá os europeus gastaram 44 bilhões de euros em petróleo da Rússia. Hungria e Eslováquia suprem 100% de sua demanda nos Urais e os dois países, junto com a República Checa, terão um ano a mais para se adaptar.
A grande questão em aberto é quem vai repor na Europa o petróleo russo embargado. Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, detentores respectivamente de 12% e 4% do mercado mundial, têm condições de aumentar sua produção, da mesma forma que o Cazaquistão, este beneficiado pela proximidade do mercado. Na busca de fornecedores, até Venezuela e Irã, párias internacionais, são opções em discussão. A Opep, no entanto, que reúne os principais produtores, não demonstra interesse em colocar mais petróleo na roda, escaldada por outras ocasiões de crise em que fez isso, a situação se acalmou e ela se viu inundada de estoques indesejados. Os Estados Unidos, o maior produtor mundial, consomem quase tudo internamente. “A recente liberação de reservas de emergência americanas atenua os problemas, mas não se sabe até quando vai durar”, ressalta Jonathan Eyal, do instituto Royal United Services, de Londres.
Se substituir o petróleo russo na Europa não é tarefa fácil, mais complicada ainda vai ser a prometida suspensão gradativa das importações de gás da Rússia, produto que supre 40% das necessidades dos países europeus (60% no caso da Alemanha, o motor do continente) e flui através de gasodutos construídos para essa função. A Noruega é o fornecedor mais à mão, mas tem capacidade limitada. Outros produtores que poderiam chegar à Europa via gasodutos vizinhos esbarram em litígios de fronteira, caso da Argélia via Marrocos (que é conectado à Espanha), se os dois países do Norte da África não estivessem brigando por pagamentos em aberto, e do gás israelense bombeado para a Turquia sob as águas de Chipre, não fossem esses dois inimigos mortais. Estados Unidos, o maior produtor do planeta, e Catar, por causa da distância, teriam de fornecer gás liquefeito transportado pelo mar, e diversos portos europeus já estão em obras para receber os enormes navios-tanque, mas a transição é cara e demorada. A Rússia, por seu lado, terá de dirigir o comércio para o Oriente e outras partes do mundo. Se acontecer mesmo, o rearranjo do tabuleiro energético mundial promete muita dor de cabeça.
Publicado em VEJA de 18 de maio de 2022, edição nº 2789