O muro do ensino: governo Trump avança na cruzada ideológica contra universidades
Presidente americano escala um degrau ao tentar impedir a presença de alunos estrangeiros

Fundada em 1636, antes mesmo da independência dos Estados Unidos, a Universidade Harvard vem há décadas encabeçando os rankings globais da excelência por sua respeitável folha de serviços prestados ao conhecimento, que ali viceja nas mais distintas áreas do saber. Do campus fincado na pequena Cambridge, ao lado de Boston e vizinho de outros pesos-pesados da academia, como o MIT, emergiram inventos que mudaram o curso da história, como o desenvolvimento da vacina contra o sarampo e os processadores quânticos que deram novas feições à corrida tecnológica. Ao todo foram 161 prêmios Nobel concedidos a gente que por lá encontrou incentivo ao pensamento inovador e os recursos para lhe dar asas.
Nas últimas semanas, e por motivo bem menos nobre, Harvard foi sugada ao centro das atenções: virou o símbolo das políticas conservadoras capitaneadas pelo governo Donald Trump que, em seu conjunto, empurram o ensino superior americano a uma tutela jamais vista à liberdade nos mais variados escaninhos da vida universitária. A mais recente delas, anunciada no dia 22, mira os estudantes estrangeiros, fonte vital na engrenagem financeira dessas instituições seculares, e peça fundamental na teia que conduz à qualidade. “Sem eles, Harvard não seria Harvard”, resumiu o reitor, Alan Garber.

Depois de Trump dizer que a universidade não seria merecedora de recursos federais por disseminar “ódio e estupidez” e contratar “idiotas de esquerda radical”, disparos seguidos de um corte de bilhões de dólares em repasses federais, a Casa Branca revogou a licença de Harvard para matricular estrangeiros, que representam um terço dos alunos. Um dia depois, a decisão foi derrubada na Justiça, em um imbróglio que deve se arrastar. Mas as consequências são imediatas. Em terreno movediço, sem saber o dia de amanhã, os observadores avaliam que jovens mundo afora pensarão duas vezes antes de escolher Harvard e outras instituições de ensino em solo americano.
Em sua cruzada, o governo escalou ainda mais o tom na terça-feira 27, ao ordenar às embaixadas, a do Brasil incluída, que suspendam agendamentos de entrevista de visto para estudantes. A razão, segundo documento oficial, é ganhar tempo para implementar um sistema que fará uma varredura nas redes sociais de todos que pleiteiam uma vaga universitária. “Estrangeiros que trabalham para minar os direitos dos americanos não devem ter o privilégio de vir para o nosso país”, pronunciou-se o secretário de Estado, Marco Rubio, que horas mais tarde anunciou uma revogação “agressiva” de vistos de estudantes chineses ligados ao Partido Comunista ou envolvidos em “áreas críticas”.
Para justificar o cerco às universidades, trumpistas de plantão alegam que elas seriam terreno livre para a disseminação do antissemitismo e palco de injustiças a talentos que estariam sendo desfavorecidos em nome dos exageros da cultura woke, pronta para privilegiar minorias a todo custo. Há um reconhecimento de que, na necessária caminhada histórica rumo à inclusão de camadas da sociedade sempre postas do portão para fora do ensino superior, a começar pelos negros, excessos foram, e ainda são, de fato cometidos. O que não justifica a perseguição à ideia essencial da diversidade, que o próprio Trump combate ao exigir a extinção de toda e qualquer política universitária guiada por essa lupa. “As políticas ilegais de diversidade minam os valores americanos tradicionais de trabalho duro e realização individual em favor de um sistema corrosivo e pernicioso”, discursou recentemente, em tom abusado.

O estrago, é natural, se espalha. A Universidade Columbia, em Nova York, também está na mira. Ela foi acusada por Trump de “violar direitos civis de alunos judeus”. Pode, sim, ter ocorrido por parte de uma minoria radical dos jovens de lá em meio a protestos que atingiram fervura máxima no ano passado — nunca por parte da instituição. Mesmo assim, ao contrário de Harvard, Columbia se dobrou a exigências sem precedentes, tais como trocar a chefia do departamento de estudos do Oriente Médio, sem ter se livrado da tesoura que, também ali, podou recursos federais.
As incertezas sobre até onde vai a mão pesada trumpista já faz cientistas terem receio de tocar pesquisas em áreas que possam soar inadequadas ao governo e espalham medo entre estudantes estrangeiros, que relatam ter preventivamente deletado postagens nas redes. Uma aluna brasileira da pós-graduação de Columbia, que prefere se manter no anonimato, contou a VEJA que orientadores de certos departamentos aconselham estudantes estrangeiros a não viajar agora a seus países de origem. “Disseram que, se fôssemos barrados na imigração, a universidade não poderia fazer muita coisa e todo o nosso esforço seria jogado fora”, diz.
O episódio de Harvard, que segundo o governo estaria sonegando dados dos estrangeiros, não apenas impacta o percurso de 1 milhão de universitários (quase 20 000 brasileiros) vivendo hoje nos Estados Unidos, como abala um filão que gera 44 bilhões de dólares à economia. Muitos levantamentos já demonstraram quão valiosa é a multidão forasteira para fazer girar o PIB, por ser, na média, mais propensa ao risco e ao empreendedorismo. Um relatório da Fundação Nacional para a Política Americana enfatiza que cerca de 25% das empresas nos Estados Unidos, com valor mínimo de 1 bilhão de dólares, tiveram como fundador um estrangeiro com diploma de alguma universidade do país. Nesse rol consta Elon Musk, nascido na África do Sul e o mais rico de todos, e Eduardo Saverin, o brasileiro que ajudou a criar o Facebook. O físico alemão Albert Einstein, que exerceu sua genialidade em Princeton, é exemplo-mor de um panteão inesgotável de portadores de diferentes passaportes que deram nova estatura ao saber na América (veja o quadro abaixo). “Talentos como o russo Sergey Brin, do Google, chegaram aqui como estudantes e mudaram para sempre a economia”, observa o economista Raghuram Rajan, da Universidade de Chicago. Ele está coberto de razão.

Desde o fim da Segunda Guerra, os Estados Unidos transformaram suas universidades em motores da inovação, embaladas por um contingente que afluía de territórios devastados, sobretudo da Europa. O país adotou, então, uma sólida política de atração de talentos globais — uma parcela deles fez carreira, produziu conhecimento e nunca mais retornou à pátria natal. Essa turma contribuiu para o fortalecimento das instituições e também se beneficiou dele. Dos anos 1980 em diante, mudanças na legislação permitiram que as universidades tivessem direitos sobre invenções financiadas com dinheiro público, o que fomentou a criação de startups e centros de inovação em torno dos quais floresceram ecossistemas como o Vale do Silício, na Califórnia. O ensino superior se converteu em potente manivela do crescimento e ferramenta de soft power, à medida que os estrangeiros passaram a irradiar ideias e iniciativas que ali circulavam.
É essa engrenagem que agora se vê na mira. “Ao querer impor filtro ideológico às universidades, o governo atropela a Primeira Emenda e a liberdade de expressão que ela tão radicalmente protege”, disse a VEJA Lee Bollinger, uma das mais respeitadas autoridades no assunto, que por vinte anos ocupou a cadeira de reitor em Columbia. Segundo ele, nem mesmo nos sombrios tempos do macarthismo, na década de 1950, a perseguição ao livre pensar teve a envergadura de agora. “A questão hoje é que não se trata da ação de um senador, como Joseph McCarthy, mas de um Executivo em pleno poder, punindo opositores e instituições por seus pontos de vista”, diz. Reverter o cenário levará tempo. Por ora, 75% dos professores baseados em instituições americanas declaram cogitar uma mudança de ares e 42% dos estrangeiros interessados em estudar nos Estados Unidos recalculam a rota. Enquanto isso, países se mexem para atrair os talentos desencantados com a América, caso de França, China e até do Brasil, que já avisou estar de portas abertas para pesquisadores de fora. De todas as frentes de batalha abertas por Trump, essa talvez seja a mais perigosa por travar a marcha do conhecimento.
Panteão forasteiro
Personalidades de diferentes tempos fizeram a ciência avançar nos Estados Unidos

Albert Einstein (1879-1955)
Em Princeton, o físico alemão que virou sinônimo de genialidade deu passo crucial em pesquisas sobre a energia nuclear

Sergey Brin
Foi em meio à efervescência inovadora de Stanford, na Califórnia, que o jovem russo fundou o Google ao lado de Larry Page

Katalin Karikó
A bioquímica húngara fez estudos que levaram à vacina de RNA da covid-19 na Pensilvânia e ganhou o Nobel
Publicado em VEJA de 30 de maio de 2025, edição nº 2946