O ‘mal-amado’ que pode enrolar Trump na Justiça
O depoimento de Michael Cohen a uma comissão da Câmara é má notícia para o presidente Donald Trump; mas não só para ele
Os bares de Washington abriram às 10 da manhã, como se fosse final de campeonato de beisebol ou do futebol americano. As redes de TV abertas, com exceção da “trumpiana” FoxNews, de Rupert Murdoch, tomaram a rara decisão de se juntar aos canais a cabo e exibir a sessão ao vivo. Quando ergueu a mão para prestar juramento, Michael Cohen, ex-advogado do presidente americano, Donald Trump, já tinha oferecido um aperitivo dos fogos de artifício que pretendia soltar.
Em sua declaração inicial, com 20 páginas, acusou Trump de ser racista, patife, de mentir sobre as finanças da sua campanha de 2016 e de cometer crime no exercício da Presidência dos Estados Unidos.
O Michael Cohen visto nesta quarta-feira, 27, com os olhos marejados ao falar dos dois filhos e da sentença de três anos de prisão a partir de maio, era uma sombra do valentão que intimidava os adversários, amantes e repórteres que atravessassem o caminho de seu ex-chefe. De todos os convocados a depor nas duas câmaras do Congresso, com exceção de Donald Trump Jr., Michael Cohen é quem melhor conhece as entranhas das empresas de Trump e as confusões de sua vida privada. É também a figura mais trágica da órbita trumpiana.
Os deputados republicanos, como se esperava, partiram para o ataque feroz. Disseram que Cohen não passa de um mal-amado, rejeitado pelo ex-chefe por ser incompetente para ter um cargo na Casa Branca. Recorreram ao histrionismo de mostrar um pôster com a pobre rima “Liar, liar, pants on fire!” (“Mentiroso, mentiroso, calças em chamas). Pintaram Cohen como um escroque ganancioso e um advogado que traiu seus clientes.
Tudo isso ele efetivamente é, como mostram reportagens da imprensa e os documentos dos promotores federais de Nova York que o condenaram. O que os republicanos nem sequer tentaram foi desmentir os fatos alegados por Cohen, alguns corroborados por documentos que ele trouxe consigo, como os cheques assinados pelo presidente dos Estados Unidos para reembolsá-lo pela compra do silêncio da atriz pornô Stormy Daniels.
A sabatina mostrou que os republicanos não tinham o menor interesse de defender seu presidente com fatos nem exercer seu dever, que é garantir a independência do Legislativo. Afinal, os cheques foram recebidos por Cohen depois da posse de Trump e constituem uma violação do compromisso do presidente de blindar a Casa Branca de seus negócios pessoais.
Pela primeira vez desde 2010, na maioria, os deputados democratas havia roteirizado o depoimento para atingir o presidente, apesar da falta de credibilidade de Cohen. Além de ter sido condenado por fraude fiscal e violação de leis de financiamento de campanha, ele mentira quando depusera anteriormente no Congresso. Sobre isso, desta vez, ele soltou um coquetel Molotov contra a defesa do presidente. Deixou claro que seu primeiro depoimento foi revisado pelos seus advogados, criando uma nova trilha para possível obstrução de Justiça.
Além disso, Cohen confirmou que, quando dera uma entrevista à revista Vanity Fair, em janeiro de 2018, recebera um telefonema de Trump. Ele queria saber se Cohen manteria a versão combinada – de que não sabia do pagamento a Stormy Daniels. Não é crime mentir para jornalistas. Mas o presidente é classificado na investigação do conselheiro Robert Mueller como um “co-conspirador não indiciado” porque o pagamento à atriz pornô seria uma contribuição ilegal de campanha.
Outra mentira de Donald-não-tenho-nada-a ver-com-a Rússia-Trump já investigada pela imprensa americana foi confirmada por Cohen. O presidente continuou a negociar a construção de uma Trump Tower em Moscou quando já era o candidato oficial à Casa Branca, que tinha imposto sanções comerciais à Rússia pela anexação da Crimeia.
O depoimento de Michael Cohen foi má notícia para outros personagens. Entre eles, pode estar o presidente e sua família. Mas os promotores federais do Distrito Sul de Nova York sabem quem são, já que Cohen deixou claro estar colaborando com eles. Não é difícil imaginar o nome de um deles, capaz de tirar o sono do presidente.
Allen Weisselberg, diretor financeiro das Organizações Trump, começou a trabalhar como contador para Fred, pai do presidente, nos anos de 1970. Ele sabe muito e já recebeu imunidade do conselheiro Mueller para depor no caso do pagamento a Stormy Daniels. Weisselberg preparou as declarações de Imposto de Renda que Trump se recusa a divulgar, quebrando uma tradição de quatro décadas na Presidência americana, pagava contas pessoais da família e direcionava negociações.
Não é mistério que, pelo menos desde os anos 1980, as empresas do presidente faziam negócios com figuras sinistras, como membros da máfia russa, que compraram apartamentos na Trump Tower com dinheiro vivo. Os cassinos falidos de Nova Jersey, nos anos 1990, são todo um outro capítulo cabeludo da história de Trump. Um Allen Weisselberg falante e com imunidade seria letal, porque as investigações do Distrito Sul podem continuar além da eleição de 2020 e atingir os três filhos mais velhos do presidente. Eric e Donald Jr continuam com Weisselberg à frente das empresas. Ivanka era executiva até o final de 2016 e agora é assessora do pai na Casa Branca.
A audiência eletrizante de hoje inspirou comparações com audiências do período do escândalo Watergate. Mas, além da completa falta de disposição dos republicanos em enfrentar Trump, como fizeram em 1974, ao forçar Richard Nixon a renunciar, há outra diferença crucial.
As revelações de Michael Cohen seriam uma bomba nos telejornais da época. Hoje, os aliados do presidente sabem que sua base dura, que oscila entre 37% e 40% do eleitorado, vive numa bolha de informação dominada pela Fox News. Muitos dos tabus quebrados pelo atual presidente desafiam a decência do cargo, mas não desafiam a lei. E as leis que fundaram os Estados Unidos, há mais de dois séculos, não previam o comportamento de Donald Trump.