O impacto da vitória da extrema direita em Portugal
Grupo conquista quase 20% dos votos, sai da eleição como o maior vencedor e complica a formação de um novo governo pelas legendas tradicionais
Todo ano, no dia 25 de abril, desde 1974, Portugal celebra a Revolução dos Cravos, movimento popular pacífico que pôs fim à ditadura instituída por António de Oliveira Salazar (1889-1970). Neste abril, quando a volta à democracia completa exatos 50 anos, a comemoração ganha um traço de amargor: nas eleições gerais realizadas no domingo 10, o maior triunfo coube ao partido ultradireitista Chega, francamente nostálgico do salazarismo, que quadruplicou sua bancada, conquistando 18% dos votos e 48 assentos na Assembleia da República. “Hoje é o dia que assinala o fim do bipartidarismo em Portugal”, proclamou o líder do Chega, André Ventura, de 41 anos, que ganhou força e influência no complicado tabuleiro político montado pelo resultado eleitoral, sem clara vantagem para nenhuma das duas legendas que tradicionalmente se revezam no poder. Nele, a coalizão liderada pelo conservador Partido Social Democrata (PSD) venceu por margem estreitíssima o Partido Socialista (PS): 29% dos votos e 79 deputados, contra 28% e 77 cadeiras do rival.
Programada para acontecer somente em 2026, depois de uma clara vitória do PS que lhe deu confortável maioria parlamentar, as eleições foram antecipadas porque, em novembro, o primeiro-ministro António Costa renunciou em decorrência de um escândalo de corrupção. As denúncias não envolveram Costa diretamente, mas implicaram seu chefe de gabinete e um ministro, e ele considerou não ter condições de seguir no poder, deixando o cargo e a liderança do partido. Decepcionados e irritados com os políticos tradicionais, os eleitores se dividiram e criaram um quadro complexo para a formação do novo governo.
A coligação vencedora, Aliança Democrática (AD), está longe da maioria no Parlamento de 230 cadeiras. Encarregado de formar o novo governo, Luís Montenegro, 51, líder do PSD, segue rejeitando, como fez durante toda a campanha, a participação em seu gabinete do Chega, que qualifica de xenófobo e racista. “Não é não”, afirma. A expectativa é que opte por compor um governo de minoria, negociando projeto a projeto com as demais legendas — o que deve levar a embates com o Partido Socialista, agora liderado por Pedro Nuno Santos, em questões em que as duas legendas divergem profundamente, como o orçamento anual da União. Se a composição do novo gabinete não estiver definida até 20 de março, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa pode convocar novas eleições.
O Chega, tal qual outras siglas populistas, surgiu em 2019 fustigando a crescente presença de imigrantes e o aumento da criminalidade, resumidos no slogan “Portugal precisa de uma limpeza”. Seu alvo inicial eram os “roma” (como se convencionou agora chamar os ciganos), mas o guarda-chuva não deixa de alojar os brasileiros, que formam 40% dos estrangeiros no país. Com o tempo, estendeu os ataques à alta do custo de vida, causa principal de uma crise imobiliária (outro pecado fincado na conta da imigração) que vem tirando o sono dos portugueses. Habilidoso em combinar teorias conspiratórias e discurso raivoso, Ventura, ex-seminarista e ex-comentarista de futebol de perfil carismático, se elegeu para a Assembleia da República no primeiro ano do Chega — a única vaga conquistada pela legenda. Dois anos depois, concorreu à presidência, ficando em terceiro lugar, com 11,9% dos votos. O resultado de agora representa um estrondoso avanço para a legenda novata.
Tanto o crescimento do Chega quanto a vitória apertada da Aliança Democrática se encaixam na evolução do conservadorismo na Europa, onde, nos últimos dois anos, siglas de direita chegaram ao poder ou se tornaram o fiel da balança em governos na Holanda, Finlândia, Suécia, Grécia e Itália. Na Espanha, o Vox dobrou sua votação regional de 2023, e, na Alemanha, o fascista Alternativa para a Alemanha elegeu seu primeiro prefeito. Segundo especialistas, a ascensão de partidos que pareciam insignificantes no quadro político é decorrência da insatisfação dos eleitores, fartos da falta de perspectivas de futuro, acirrada pelo persistente aumento do custo de vida e pela entrada no continente de levas de refugiados e imigrantes. Nas eleições para o Parlamento Europeu, em junho, quando 400 milhões de pessoas vão às urnas, prevê-se que os ultranacionalistas assegurem cerca de 98 dos 720 assentos. “Este resultado representaria outro avanço significativo da direita”, afirma Simon Hix, professor de política comparada no Instituto Universitário Europeu. O Chega, neste cenário, chegou chegando, e talvez para ficar.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2024, edição nº 2884