O Brexit sob nova direção
Boris Johnson assume o governo britânico com a promessa de sair da União Europeia com ou sem acordo. Falta combinar com rebeldes do seu Partido Conservador
Na Inglaterra, país dos políticos alinhados, articulados e bem-postos — do tipo que, como ressaltou uma colunista de moda, sabe que tem de sentar-se sobre a parte inferior do paletó para manter os ombros do terno no lugar —, há um novo primeiro-ministro que não é nada disso. Boris Johnson, 55 anos, ex-prefeito de Londres e ex-ministro das Relações Exteriores, até que se arrumou e se penteou para, como manda o protocolo, apresentar-se à rainha Elizabeth como o novo líder do Partido Conservador. Estragou o efeito fazendo uma das mais desengonçadas reverências já vistas no Palácio de Buckingham, mas saiu de lá com a nomeação confirmada para o cargo. No primeiro discurso em frente ao número 10 da Downing Street, a casa-gabinete que agora ocupa, criticou a antecessora Theresa May pelos “três anos de incertezas sem fundamento”, reiterou que a Inglaterra sairá da União Europeia em 31 de outubro com ou sem acordo e prometeu “energizar o país”. Não vai ser fácil. Num Reino Unido paralisado pelo impasse do Brexit, ninguém sabe como ele encontrará uma saída para a saída.
Alexander Boris de Pfeffel Johnson, que todo mundo chama de Boris, é um político esperto, carismático, mais maleável do que faz crer e aberto a atitudes heterodoxas. Com esses atributos, até teria chance de desatar o nó do Brexit — ou, pelo menos, mais chance do que a fraca May, que gastou o salto dos sapatinhos coloridos em vão. Mas tem pela frente uma barreira: seu partido está rachado dentro de um Parlamento em polvorosa, onde nenhum acordo passa. Ardoroso defensor do Brexit, o novo primeiro-ministro estufa o peito sob a camisa geralmente amarfanhada para afirmar que em 31 de outubro, quando vence o prazo de negociação, a Inglaterra meterá o pé na porta e sairá da UE. De novo, falta combinar com os parlamentares, que em março aprovaram uma moção que tira do cenário a chamada alternativa no deal. “Há uma clara divisão no Partido Conservador a respeito da saída sem acordo, mas a maioria é contra”, aponta David Phinnemore, da Queen’s University de Belfast, na Irlanda do Norte.
Um balão de ensaio erguido quando a vitória de Johnson na disputa pela liderança já era certa (ele teve o dobro dos votos do adversário, Jeremy Hunt) é a possibilidade de que ele suspenda o Parlamento quando o fim de outubro chegar, atropelando votações anteriores e impedindo novas manobras. O primeiro-ministro pode fazer isso, e faz, para viabilizar os recessos de praxe. Mas o recurso nunca foi usado com fins políticos e pegaria muito mal. Pelo sim, pelo não, na quinta-feira 18 os parlamentares votaram a favor da convocação obrigatória da Casa antes do fatídico 31 de outubro.
Inabalável, o descabelado primeiro-ministro declarou no discurso de posse: “É vital nos prepararmos para a possibilidade remota de uma saída sem acordo”. Antes de apelar para o no deal, porém, Johnson promete sentar-se com a Comissão Europeia e “melhorar” o plano de ação de 600 páginas (isso, para os primeiros dois anos) que May arrancou ao longo de tortuosas negociações iniciadas assim que um referendo, em 2016, aprovou o Brexit. Vai ser dureza: os líderes do bloco avisaram que não têm a menor intenção de reabrir discussões sobre o acordo que está na mesa, muito menos sobre seu ponto mais delicado: como lidar com a fronteira sem controle algum — ponto crucial do tratado que pôs fim a décadas de conflito local — entre a Irlanda, que é da UE, e a Irlanda do Norte, que faz parte do Reino Unido. A solução encontrada, chamada de backstop, determina que por algum tempo tudo continuará como é hoje. Para os duros do Brexit, isso significa que uma parte do solo nacional seguirá sob as regras do bloco, algo que Johnson já declarou não aceitar “em hipótese alguma”.
A saída sem uma solução pode disparar um cenário de fim de mundo, com filas intermináveis de pessoas e de caminhões nas fronteiras, aviões no chão e aeroportos lotados, falta de alimentos e remédios nas prateleiras e outros dramas. A Inglaterra terá de renegociar acordos bilaterais de comércio com o mundo inteiro, perspectiva que faz Donald Trump, o inimigo número 1 dos pactos entre blocos, esfregar as mãos e prometer um tratado “fenomenal” entre os Estados Unidos e os ingleses. “A maior vítima do Brexit a qualquer custo será o comércio com a própria Europa, o principal mercado dos produtos britânicos”, alerta Alan Winters, ex-economista-chefe do Departamento para o Desenvolvimento Internacional do Reino Unido. Johnson, no começo do mês, desautorizou os profetas do caos: “Prevejo com muita confiança que vamos ter um Brexit bem-sucedido. Os aviões vão voar, haverá água limpa para beber e não faltará soro de leite para as barras de chocolate”.
Boris Johnson tem carreira e vida pessoal conturbadas e histórico de incorreções políticas (a revista alemã Der Spiegel o colocou na capa com as feições de Alfred Neumann, personagem da revista satírica Mad). Cultiva a imagem de político acessível, engraçado, enfim “humano”, distante das origens fincadas na elite mais rarefeita do país. Começou como jornalista capaz de tudo por uma boa manchete — inclusive inventá-la. Mantém até hoje uma coluna no jornal The Telegraph, sua maior fonte de renda (da qual deve abdicar). Ao longo dos dois mandatos como prefeito de Londres, era visto como um sujeito simpático e excêntrico, elogiado pela organização da Olimpíada de 2012. Saiu do cargo para uma rápida ascensão a estrela do Partido Conservador e passou a ser levado a sério. Está se divorciando de Marina Wheeler, com quem morou-separou-morou durante 26 anos e tem quatro filhos (ele tem mais um fora do casamento). Namora Carrie Symonds, vinte anos mais jovem e personagem de um bate-boca recente que resultou na polícia batendo à porta. Carrie deve ir morar em Downing Street, inaugurando a função de primeira-companheira.
Tomara que vivam em paz, pois a agenda do novo primeiro-ministro está carregada. Além do abacaxi do Brexit, ele tem pela frente a má vontade da Escócia, que não quer se separar da UE, e os protestos diários de ativistas contra as mudanças climáticas. No plano externo, vai encarar uma crise com o Irã — cada país tem um petroleiro do outro apreendido, em razão de sanções econômicas impostas pelo amigo americano. Nos pubs, de olho na TV, como têm feito nos últimos três anos, os britânicos aguardam as consequências da virada à direita de seu país, o mais novo membro do clube de nacionalistas que toma conta do mundo.
Publicado em VEJA de 31 de julho de 2019, edição nº 2645