O beijoqueiro: democrata acusa Joe Biden de `tocá-la` em 2014
Favorito antes de anunciar a pré-candidatura, ex-vice-presidente enfrenta escrutínio dos 50 anos de política e da distribuição de carinhos não solicitados
Em narrativa na primeira pessoa publicada online na seção The Cut da revista New York na sexta-feira 29 à noite, ex-deputada estadual Lucy Flores acusou o então vice-presidente Joe Biden de tocá-la e de beijar seu cabelo quando ela estava em campanha para vice-governadora do estado de Nevada, em 2014. A denúncia de Flores contra seu colega de partido competiu com uma semana de artilharia política pesada nos Estados Unidos.
A democrata Flores tinha 35 anos e não se elegeu. No artigo, diz ela, tinha sentido lisonja e gratidão pela presença de Biden num comício. Pouco antes de subir ao palanque, ela conta, sentiu duas mãos nos seus ombros e ficou paralisada. “Porque o vice-presidente dos Estados Unidos está me tocando?”, lembra ter pensado, enquanto sentiu Biden chegando mais perto. Ele teria, então, cheirado seu cabelo e “plantou um longo beijo atrás da minha cabeça.”
Ciente da urgência de apagar incêndios desta natureza na era do #MeToo, um porta-voz de Biden disse que ele não se lembra do alegado incidente e que tinha ficado feliz de apoiar sua candidatura democrata em Nevada. “Mas o vice-presidente Biden acredita que a senhora Flores tem todo direito de compartilhar suas próprias memórias e reflexões, e é uma mudança para melhor o fato de que, na nossa sociedade, ela tenha toda oportunidade de fazer isto. Ele respeita a senhora Flores como uma voz forte e independente na nossa política e deseja o melhor para ela”, concluiu o porta-voz Bill Russo.
Com o assunto tema de todos os tradicionais programas políticos de domingo na TV americana, Biden emitiu um novo comunicado. Disse que, em anos de campanhas, “ofereci inúmeras expressões de afeição” e “nenhuma vez, nunca, acredito que agi de maneira inapropriada.” Biden também aludiu à sua atuação como defensor das mulheres contra a violência e, num tom conciliatório, disse: “Chegamos a um momento importante quando mulheres sentem que podem e devem relatar suas experiências, enquanto os homens devem prestar atenção. É o que vou fazer.”
Lucy Flores diz que foi desencorajada a tocar no assunto por um operador político ligado a Biden, que a recordou do poder do então vice-presidente. Com o passar do tempo, ela começou a descobrir outras cenas de mulheres constrangidas, a mais famosa delas na posse do secretário de Defesa Ash Carter, em fevereiro de 2015. Enquanto Carter discursava, Biden se debruçava sobre os ombros de uma desconfortável Stephanie Carter e sussurrava algo em seu ouvido.
A própria Lucy Flores diz, no artigo, que Biden não cometeu nenhum crime, mas argumenta que os gestos não considerados como transgressões por muitos são vividos de maneira diferente por quem é o alvo. “O desequilíbrio de poder e de atenção é o ponto – e todo o problema,” conclui.
Em entrevista domingo de manhã à CNN, Flores se defendeu de inevitáveis acusações de oportunismo político. Ela apoiou a pré-candidatura presidencial de Bernie Sanders, em 2016, e ontem estava no comício de lançamento da pré-candidatura do texano Beto O’Rourke, em El Paso. Ainda não endossou nenhum político para 2020, mas deixa claro que o comportamento de Biden é um entre vários problemas que deveriam desqualificá-lo para concorrer à Casa Branca.
Joe Biden tem 29% de preferência do eleitorado democrata na última pesquisa da Quinnipiac University, contra 19% de Bernie Sanders. De fato, os problemas potenciais do pré candidato favorito, porém não declarado, não se reduzem à liberdade física que toma com mulheres em público. A história da professora de Direito Anita Hill é mais um albatroz no seu currículo, e Biden tem usado suas aparições públicas para fazer seu ato de contrição por seu papel como líder do Comitê Judiciário da Câmara, em 1991.
Naquele ano, Hill tinha sido convocada para depor sobre o juiz Clarence Thomas, indicado pelo presidente George Bush (pai) para uma vaga disponível na Suprema Corte. Ambos são negros, e Thomas iria ocupar a vaga aberta com a morte do primeiro juiz negro na história da Corte, Thurgood Marshall. Hill contou, em detalhes, que Thomas a perturbava constantemente com convites para sair. Não contente com as suas recusas, ele atormentava a subalterna com descrições de atos sexuais aberrantes.
Hill foi sabatinada com escárnio por 14 senadores homens dos dois partidos, num momento tido como marco para o debate público sobre o assédio sexual. Anos depois, um livro revelou que Biden poderia ter convocado várias mulheres de peso para confirmar o depoimento de Hill. Não o fez. Thomas foi confirmado por maioria apertada e hoje ocupa seu cargo vitalício na Corte como um dos mais direitistas entre os nove juízes.
Os críticos de Biden dizem que ele, ao dizer que gostaria de ter feito mais no caso de Anita Hill, parece abdicar de sua responsabilidade. Como líder da então maioria democrata, ele tinha o controle do processo de aprovação de Thomas. O episódio não ajudou a polir sua reputação quando sua própria equipe da eventual campanha vazou para a imprensa o rumor destinado a cortejar o voto negro. O sinal seria a escolha de seu vice assim que anunciar sua pré-candidatura – algo que normalmente só ocorre no final do processo de primárias eleitorais.
Sua vice seria Stacey Abrams, uma estrela ascendente no Partido Democrata que ainda considera uma possível pré-candidatura em 2020. Abrams acaba de perder a eleição para se tornar a primeira governadora negra do estado da Georgia, numa campanha marcada por acusações de corrupção e supressão do voto por seu adversário branco, Brian Kempf. Um assessor de Abrams reagiu com sarcasmo ao aparente paternalismo da sugestão dos assessores de Biden – além de ter negado sua candidatura a vice.
“O que faz isto parecer especialmente exploração é que Biden nem se incomodou em endossar Stacey na primária para governadora.”
Aos 76 anos, Joe Biden sofre com sua própria identidade como homem branco num ano de pré-candidaturas que incluem negros, latinos mulheres e um gay. Ele ainda carrega o fardo das políticas democratas adotadas a partir dos anos 1990, quando o partido se deslocou para o centro, sob o comando de Bill Clinton. Uma chamada herança maldita da era Clinton foi o endurecimento de leis penais, que lotou as prisões americanas com negros e latinos em números desproporcionais a sua representação demográfica. Os Estados Unidos têm hoje a maior taxa de encarceramento do mundo, com 2 milhões e 100 mil pessoas atrás das grades.
A reforma da Justiça criminal é a única iniciativa do governo Trump que os democratas aplaudem. O Congresso passou, em dezembro passado, o Ato do Primeiro Passo, um início de reforma que atinge apenas as prisões federais, responsáveis por abrigar pouco mais de 10% dos detentos.
À frente do Comitê Judiciário, em 1994, Biden teve papel instrumental para passar duas leis, exigindo penas de prisão obrigatórias para pequenas ofensas envolvendo drogas. Era um período de alto índice de crime urbano e de epidemia de crack, e os democratas eram acusados de ser tolerantes. Para se ter uma ideia da delicadeza do tema hoje, a pré-candidata Kamala Harris, senadora de ascendência jamaicana e indiana, tem se esforçado para amenizar sua reputação de dureza quando era promotora do estado da Califórnia.
A questão do centrismo e da idade vai seguir Joe Biden na campanha para 2020, se e quando ele se candidatar. Estima-se que o democrata fará campanha lembrando os americanos das conquistas de Barack Obama. Um problema é que a herança de Obama em saúde, economia, meio ambiente, justiça social e tolerância cultural está sendo sistematicamente desmontada sob Donald Trump. Como senador e vice-presidente, a tendência de Biden de cometer gafes era tratada pela imprensa e pelo público como uma excentricidade benigna. Mas, num campo em que 20 pré-candidatos podem vir a se digladiar, o processo das primárias pode ser brutal.
Uma nova pesquisa da rede NBC com o Wall Street Journal revelou, neste domingo, que 21% dos eleitores republicanos se sentiriam confortáveis em votar em Joe Biden para presidente. Ele passou a longa carreira no Congresso fazendo gestos conciliatórios, excluindo os beijos, para colegas republicanos. Seria ele o candidato que a maioria dos democratas considera capaz de derrotar Donald Donald Trump? O currículo não ajuda. Biden concorreu duas vezes como pré-candidato a presidente, em 1988 e 2008. Como sabemos, perdeu em ambas.