Mudança para mulheres na Arábia Saudita será lenta, diz ativista
Presa em 2011 por dirigir um carro, Manal al-Sharif afirma que o caso da jovem filmada de minissaia ajuda a quebrar o tabu
Usar minissaias em dias quentes e dirigir o próprio carro para fazer compras no mercado fazem parte da rotina de boa parte das brasileiras e de mulheres de todo o mundo. Ou quase todo. Na Arábia Saudita, que mantém um rígido código de comportamento imposto à população feminina, atos banais como esses podem levar à prisão.
Foi o caso da saudita identificada como Khulood, detida nesta terça-feira após um vídeo seu circular na internet. Nele, a moça aparece de minissaia e uma blusa curta andando por cenários desertos.
Há seis anos, quem foi parar atrás das grades por desafiar esse código foi Manal al-Sharif, de 38 anos, que dirigiu um carro e publicou um vídeo com essa “transgressão” na internet. O vídeo teve centenas de milhares de visualizações em um só dia.
Casada com um carioca (“adoro a VEJA, porque meu sogro assina e manda para a gente”, diz ela), a saudita hoje vive na Austrália, e acaba de lançar o livro “Ousando dirigir: o despertar de uma mulher saudita” (ainda não disponível em edição brasileira).
Apesar de ter ficado apenas nove dias presa por dirigir, a pressão dos que não gostaram de seu desafio acabou fazendo com que ela tivesse que deixar o país, deixando para trás o filho do primeiro casamento, hoje com 11 anos. Seu segundo filho, de 3 anos, não conhece o irmão mais velho. A mãe de Manal também não conseguiu conhecer o segundo neto antes de morrer, porque não tem o visto para entrada na Austrália. “Isso tudo por causa de meu ativismo”, disse a Manal a VEJA na entrevista a seguir.
Como você foi parar na prisão?
Em 2011, à época da Primavera Árabe, começamos um movimento convocando as mulheres a dirigir. Mas elas estavam com muito medo de irem às ruas. Wajeha, uma ativista que foi presa por ter segurado uma placa que dizia “carros querem ser dirigidos por mulheres”, foi a única que aceitou vir comigo gravar um vídeo em que eu aparecia dirigindo. O vídeo foi para a internet e teve mais de 700.000 visualizações em um dia, mas eu não fui presa. Ameaçaram que eu e outras mulheres poderíamos ser presas se dirigíssemos. Eu queria ser presa para mostrar que, se te prendem, te soltam depois. Pedi para meu irmão vir comigo em mais um passeio de carro, com nossos filhos no carro. A polícia religiosa veio e foi um desastre, mas acabaram nos liberando depois de cinco horas. A polícia religiosa estava tão brava, que mandaram a polícia secreta de madrugada na minha casa me prender. Sem julgamento, sem acusações, nada. Pedi para um amigo tuitar sobre a prisão e isso fez o mundo inteiro ficar sabendo que eu estava presa por ter dirigido. Tiveram que me liberar depois de nove dias.
Como foi a reação?
Teve gente que pediu para eu ser chicoteada, me tirarem a nacionalidade e até para eu ser estuprada e morta, somente por eu ter dirigido em público. Um religioso me chamou de prostituta durante orações numa mesquita. Para o resto do mundo, era um ato heroico, de desafio. No meu país, era um ato vergonhoso. Não há uma lei que diz que mulheres não podem ter carteira de motorista, então eu não fui contra a lei, é um costume.
O fato de terem liberado Khulood bem rápido mostra alguma mudança no país?
Isso é importante para nós. Temos um movimento para acabar com o sistema de guardiões. Na Arábia Saudita, uma mulher é menor de idade durante toda a sua vida, e um homem é designado seu guardião. Minha ex-sogra, que é viúva, tem o filho como guardião. Imagina seu próprio filho se tornar seu guardião? Então, começamos um movimento em julho passado, chamado “Eu sou meu próprio guardião”. Uma das líderes do movimento está na prisão desde abril, e sabemos que o motivo é ela falar abertamente da causa.
No caso de Khulood, não parece que houve a intenção de desafiar, ainda assim ajuda o movimento?
Khulood não é política, ela quebrou o tabu, uma mulher andando sem a abaia [vestimenta larga exigida em público] e de minissaia. Mas acho que seu ato também é de desafio e ajuda que as meninas possam quebrar tabus. Disseram que ela estava nua e eu fui ver a foto, acabei rindo.
Seu caso mostra que, mesmo fora da prisão, pode haver consequências por desafiar o código de conduta…
Quando se quebram as regras, torna-se função de todos na minha sociedade dar uma lição: fui assediada no trabalho, um guarda vigiava minha casa e meu e-mail e minhas ligações eram monitorados. Querem que você viva com medo.
Quais são os objetivos do movimento das mulheres em seu país?
Ser reconhecidas como cidadãs completas. Que o país estabeleça uma idade para que eu, uma mulher, me torne adulta, exatamente como ocorre com o homem. Eu morro e ainda sou menor perante a lei. Para que não seja mais preciso ter um guardião e que eu possa viver a vida de forma livre, sem ser escrava de alguém.
Há esperança?
A esperança existe, e a mudança virá devagar. Temos dezenas de casos de meninas que conhecemos e que estão na prisão por seu ativismo. Pela primeira vez em minha vida, estamos frente a alguém jovem [o príncipe Mohammed bin Salman, de 31 anos, primeiro na linha de sucessão], que entende a juventude e entende que precisamos ser um país moderno. Espero ver coisas importantes acontecerem. Na semana passada, permitiram a prática da educação física para meninas na escola, depois de uma intensa campanha. O status quo religioso é muito organizado na Arábia Saudita, tem financiamento e é bem conectado. Nós, como ativistas, somos sempre perseguidas, mandadas à prisão, não podemos nos reunir em fóruns, não somos financiadas. Eles nos assediam, se esforçam para que não consigamos um trabalho, para deixar claro que estamos pagando um preço pessoal alto, na tentativa de nos calarem. Isso tem que mudar. Sem mudança política, será muito difícil criar mudança social.
Então, vai chegar o dia em que será normal ver uma mulher usando minissaia e dirigindo na Arábia Saudita?
Usar minissaia é uma coisa enorme… [Risos]. Acho que dirigir será mais fácil que usar uma minissaia na rua.