Máfia se infiltra no futebol italiano por meio de torcedores radicais, os ‘ultras’
Promotores investigam relação entre grupos criminosos, extrema direita e torcidas organizadas na Itália, ligadas inclusive aos grandes Inter e AC Milan

Uma investigação de promotores de Milão, na Itália, e do gabinete do procurador nacional antimáfia do país descobriu que a máfia italiana e a extrema direita estão explorando a influência de fanáticos do futebol italiano, grupos conhecidos como “ultras“, para expandir suas redes criminosas. Em documento de 568 páginas, visto pela agência de notícias Reuters nesta quarta-feira, 18, aparece uma relação direta entre os líderes da Curva Nord, principal referência de ultras, ligado ao Inter de Milão, e a ‘Ndrangheta, o maior símbolo do crime organizado do país. Também há indícios de que chefes da máfia estão envolvidos com fanáticos do AC Milan, bem como equipes menores.
Segundo a investigação, líderes dos ultras (espécie de torcida organizada elevada à última potência), em parceria com a ‘Ndrangheta, administram golpes de ingressos e esquemas de extorsão em troca de proteção em barracas de bebidas e estacionamentos ao redor do estádio San Siro, em Milão, que o Inter e o AC Milan compartilham.
Quem são os “ultras”
A maioria dos clubes de futebol italianos é apoiada por grupos de ultras – torcedores que trazem faixas enormes aos estádios, coordenam cânticos via megafone e são os mais barulhentos na arquibancada durante as partidas. Seus rituais foram copiados por fanáticos em toda a Europa.
Com raízes na década de 1960, porém, esses grupos há muito tempo têm um elemento violento, sendo conhecidos por entrarem em conflito com gangues rivais e se dividirem em uma série de facções. Eles são comparados com frequência aos hoolingans britânicos
“O estádio passou a ser governado por grupos organizados que exercem um controle quase militar sobre as arquibancadas”, disse Giovanni Melillo, promotor-chefe antimáfia e antiterrorismo da Itália, à agência de notícias Reuters.
Ele acrescentou que os ultras usam “intimidação e retaliação violenta” para controlar atividades comerciais ligadas a campos de futebol.
Assassinatos e urgência
Melillo coordena quatro promotores adjuntos dedicados a descobrir a conexão entre futebol, crime organizado e extremismo político em toda a Itália. Segundo ele disse à Reuters, a máfia vê os clubes como “um veículo extraordinário para expansão dos negócios e consenso social”.
Em setembro, a polícia prendeu 19 membros importantes dos ultras como parte de um caso que ganhou urgência extra pelo assassinato de Antonio Bellocco, uma figura sênior na ‘Ndrangheta, por um ultra proeminente do Inter, Andrea Beretta. O crime ocorreu do lado de fora de uma academia de boxe, no mesmo mês, quando Bellocco foi esfaqueado em um aparente acerto de contas. Beretta, que alegou ter agido em legítima defesa, foi transferido para uma prisão longe de Milão por temer por sua vida e está cooperando com as investigações.
“O Inter, como clube, está em uma posição subserviente em suas negociações com membros da Curva Nord”, escreveram os promotores no documento, que foi visto pela agência de notícias Reuters.
Dois anos antes, Vittorio Boiocchi, um líder de 69 anos dos ultras do Inter com uma longa ficha criminal, foi morto a tiros do lado de fora de sua casa. O crime permanece sem solução.
Investigações também vincularam um líder dos ultras do AC Milan ao tráfico de drogas e à ‘Ndrangheta. Mas os promotores acreditam que a infiltração criminosa se estende muito além de Milão e engloba várias outras cidades italianas. De acordo com o documento emitido nesta quarta-feira, mafiosos buscam ganhar influência sobre fãs e equipes em todos os níveis do jogo profissional, da Série A às mais baixas.
O que dizem os clubes
O Inter e rival AC Milan, ambos de propriedade de investidores dos Estados Unidos, disseram que estão cooperando com as autoridades.
“Quero tranquilizar todos os nossos fãs de que somos a parte lesada, como as autoridades disseram”, disse o presidente do Inter, Giuseppe Marotta, à emissora britânica Sky News em outubro.
O AC Milan, por sua vez, disse que forneceu às autoridades todos os documentos solicitados. “Continuamos seguindo a orientação dos especialistas do gabinete do promotor para identificar e trabalhar nas áreas em que precisamos intervir”, disse o clube em um comunicado.
O promotor antimáfia Melillo afirmou que jogadores e treinadores foram intimidados por torcedores radicais, que podem ajudar ou destruir suas carreiras. O relatório “Jogadores de futebol sob fogo”, da Associação Italiana de Futebolistas, indica que houve um “aumento exponencial” de incidentes como intimidação, violência e ameaças nas últimas 10 temporadas. “O relacionamento com esses grupos é considerado, em alguns casos, crucial para o futuro de clubes, treinadores e jogadores”, explicou Melillo à Reuters.
Segundo ele, as investigações do passado sobre esse tipo de relacionamento ajudaram a descobrir escândalos de apostas, mas a natureza das “bets” modernas tornou tudo mais complicado. “Em um sistema em que as pessoas apostam até no número de escanteios ou impedimentos em uma partida, é muito mais difícil entender o que está acontecendo”, afirmou o promotor.
Em um incidente, um proeminente ultra do Inter, Marco Ferdico, ligou para o técnico do time, Simone Inzaghi, em seu celular pessoal para pedir que ele pressionasse os executivos do clube a alocar mais ingressos para a torcida organizada para a final da Liga dos Campeões contra o Manchester City em Istambul em junho de 2023.
Extrema direita
Os promotores também estão traçando o cruzamento entre os ultras, neonazistas e grupos supremacistas brancos. Investigações anteriores de neonazistas na Lombardia, Veneto e Lazio mostraram que muitos deles eram membros dos grupos fanáticos de futebol. A preocupação com esses laços aumentou quando a cidade de Amsterdã proibiu torcedores da Lazio, sediada em Roma, de assistirem a um jogo da Liga Europa com o Ajax em 12 de dezembro
“Torcedores da Lazio não são bem-vindos em Amsterdã”, disse o município em um comunicado. “O risco de distúrbios antissemitas, racistas e de extrema direita é alto demais.”
A Lazio chamou os comentários de “discriminatórios e ofensivos” e disse que a liderança do clube sempre buscou combater o racismo.
Melillo também destacou um ataque à sede do sindicato italiano CGIL, em 2021, em Roma, quando fãs da Lazio e os rivais do AS Roma deixaram de lado suas diferenças para mirar contra uma organização esquerdista. A investida foi liderada pelo líder local do grupo neofascista Forza Nuova, apoiado pelos ultras da Roma e da Lazio.
“É um fenômeno europeu, não apenas italiano, no qual milícias paramilitares reais estão crescendo, prontas para serem contratadas para outros propósitos ilícitos também, que não têm nada a ver com futebol”, disse Melillo à Reuters.