Há exatos 20 anos, polícia de Londres matava o brasileiro Jean Charles; relembre
Episódio aconteceu em 2005 e foi marcado por erros da corporação

Nesta quarta-feira, 22, o assassinato do brasileiro Jean Charles de Menezes completa 20 anos. Nascido em Gonzaga, no interior de Minas Gerais, Jean foi morto pela Polícia Metropolitana de Londres, a famosa Scotland Yard, após ser confundido com um terrorista procurado em um episódio marcado por erros.
O mineiro, que morava no Reino Unido desde 2002, estava indo realizar um serviço como eletricista na manhã de 22 de julho de 2005. Assim que saiu de seu apartamento, em Tulse Hill, no sul da capital inglesa, passou a ser seguido por agentes da polícia.
Na época, Londres passava por uma grande tensão envolvendo atentados terroristas. Em 7 de julho, 52 pessoas foram mortas após uma série de ataques a transportes públicos. Um incidente semelhante quase aconteceu no dia 21 do mesmo mês, mas as bombas não detonaram conforme planejado. Esse segundo episódio iniciou uma “caçada” por parte da polícia metropolitana contra os responsáveis, e acabou levando ao trágico assassinato de Jean.
Ao ter acesso a uma mochila com os explosivos não detonados, a Scotland Yard identificou um dos responsáveis pelo ato: uma carteirinha de academia entregava os dados do etíope naturalizado britânico Hussain Osman. No documento constavam o nome, a foto e o endereço do terrorista. Osman morava no mesmo prédio de Jean Charles.
Após a descoberta, policiais passaram a ficar de tocaia na entrada do edifício, aguardando qualquer movimentação do criminoso. Os agentes, porém, não conseguiam identificar Osman de forma clara. Eles só haviam recebido fotografias de baixa resolução, obtidas a partir de um passaporte, e nem sequer todos os envolvidos receberam cópias das imagens.
Esse cenário levou ao primeiro erro: assim que Jean saiu do prédio, a polícia passou a suspeitar que ele era Osman. Para piorar a situação, nenhum agente filmou ou fotografou o brasileiro para confirmar sua identidade com a central de inteligência. Além disso, havia uma incerteza no que dizia respeito às ordens. Os poucos policiais que estavam na tocaia passaram a seguir Jean, sem receber instruções claras do que deveriam fazer em seguida.
O mineiro foi acompanhado por várias ruas. Ele chegou a embarcar em um ônibus que ia à estação de metrô de Brixton. No entanto, o local estava fechado devido a um alerta de terrorismo, o que levou Jean a fazer um telefonema e retornar ao ônibus, indo em direção à estação de Stockwell.
Em mais uma falha da polícia, que não percebeu o motivo porque o brasileiro deu meia volta, o comportamento de Jean foi interpretado como uma tentativa de despiste. Isso convenceu parte dos agentes de que ele era um potencial terrorista.
As dificuldades na comunicação pioraram o cenário. Havia contradições nos relatos enviados pelos policiais, que não confirmavam se o homem seguido era mesmo Hussain Osman. A central ordenou que os agentes impedissem Jean de entrar no metrô “a qualquer custo”, mas eles afirmaram nunca ter recebido essa ordem.
Jean adentrou a estação de Stockwell normalmente, sentando-se ao embarcar no trem que estava na plataforma. Logo após se acomodar, um agente entrou no vagão, avisando aos demais: “Ele está aqui”. O que se seguiu foi a morte do brasileiro, alvejado com onze tiros, sete deles na cabeça.
Após o episódio, o comissário-chefe de Londres, Ian Blair, foi a público informar que a ação era relacionada a uma “operação antiterrorista”.
Polícia não admitiu erros
Inicialmente, Blair não identificou Jean como o homem morto no episódio. Segundo o comissário, o suspeito baleado teria desafiado os policiais e se recusado a obedecer ordens. Esse tom, que apontava o comportamento do brasileiro como possível motivador para sua morte, seria utilizado ao longo de todo o dia 22 de julho de 2005.
A Polícia Metropolitana informava, via comunicados, que o homem alvejado estava usando “roupas volumosas” e agindo de maneira “suspeita”. A corporação dava coro ao discurso de Blair de que o suspeito teria sido “advertido” pelos atiradores antes de sua morte. Reportagens na imprensa britânica chegaram a relatar que ele pulou a catraca ao entrar na estação.
A admissão de que teriam matado um homem por engano só veio no dia seguinte, e a cadeia de erros da operação só foi divulgada um mês depois.
Operação mal-feita
O vazamento de um relatório da corregedoria da Polícia Metropolitana contradisse a versão apresentada pela corporação até aquele momento, apontando que Jean não usava roupas volumosas, nem pulou a catraca do metrô e muito menos resistiu. Testemunhas presentes no local também desmentiram os policiais, dizendo que eles não se identificaram antes de atirar.
Recentemente, a ativista Yasmin Khan, que ajustou a família de Jean em 2005 na luta por justiça, declarou, em um documentário da Netflix, que até hoje a versão oficial tem impacto.
“Quando a polícia ou o Estado mentem, encobrem ou espalham informações errôneas, o legado disso pode ser visto. Até hoje, ainda vemos pessoas que perguntam: ‘Mas ele pulou a catraca, não pulou?’ ou ‘Ele não estava usando uma jaqueta volumosa?”
Punição insatisfatória
Como punição pelo episódio, a polícia de Londres foi condenada a pagar uma multa de 175 mil libras (pouco mais de R$ 2 milhões na cotação atual, corrigida pela inflação). As autoridades também tiveram que pagar os custos legais do processo, na casa de 385 mil libras (quase R$ 4,7 milhões, no valor reajustado). No entanto, nenhum policial foi processado individualmente, o que causou indignação na família do brasileiro.
A Comissão Independente de Queixas contra a Polícia Britânica investigou a conduta dos agentes, concluindo em 2008 que nenhum policial deveria ser processado individualmente. Na época, a decisão foi mantida pelo Ministério Público do Reino Unido.
Os familiares de Jean até chegaram a acertar uma indenização de valor não divulgado com a polícia, mas em junho de 2015, o caso voltou à tona quando eles reiniciaram a luta para punir os agentes envolvidos.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos realizou uma audiência para analisar o caso, mas, em 2016, rejeitou o recurso, afirmando que as autoridades britânicas não cometeram irregularidades com a decisão de não processar os policiais responsáveis pelo caso.