Fim de decreto não causa caos com imigrantes nos EUA, mas crise continua
Medida que permitia expulsão sumária expirou, sem tumulto na fronteira. No entanto, eles continuam chegando e a entrada está cada vez mais difícil
Mergulhada em uma difícil negociação para ampliar o limite de empréstimos que o governo pode tomar — um teto que ameaça deixar o Tesouro sem dinheiro para pagar compromissos já em junho —, a Casa Branca preparou-se nos últimos dias para mais uma dor de cabeça: levas e levas de imigrantes espremendo-se na fronteira, tentando entrar nos Estados Unidos agora que o temido Título 42, o decreto baixado por Donald Trump no começo da pandemia que permitiu a expulsão sumária de mais de 3 milhões de estrangeiros sem documentação, perdeu a validade. À medida que a data — 11 de maio — se aproximava, o movimento nas estradas do México que levam ao Rio Grande se intensificava, elevando a tensão. Em El Paso, no Texas, o prefeito chegou a decretar estado de emergência. O presidente Joe Biden despachou 1 500 soldados e 2 500 integrantes da Guarda Nacional para reforçar a ação das patrulhas locais. No fim, o caos não aconteceu e a média diária de pedidos de asilo caiu pela metade, para 5 000. “Mas é cedo para concluir que a crise está controlada”, alertou o secretário de Segurança Nacional, Alejandro Mayorkas.
A Casa Branca afirma que a situação não desandou graças a uma série de medidas que tomou para organizar a situação — a maioria delas, na verdade, dificultando a entrada de imigrantes, o que provavelmente desanimou muitos candidatos. Foi disponibilizado um aplicativo para agendar horário de atendimento nos postos de controle, mas as vagas são poucas para o volume de interessados e ele só funciona na Cidade do México e na própria fronteira, quando funciona — a conexão cai o tempo todo. Também se estabeleceu que um imigrante que sai de Honduras, por exemplo, e passa por Guatemala e México antes de chegar aos Estados Unidos tem de pedir asilo e ele ser negado nesses dois países, antes de tentar a sorte em solo americano. Praticamente ninguém se dá a esse trabalho.
O resultado é que a imensa maioria passa a divisa, se entrega a um guarda, expõe seu caso e fica a critério dele encaminhá-lo a um centro de triagem, dar-lhe um papel com prazo de sessenta dias para se apresentar em um posto ou mandá-lo de volta para o México — destino de quase todos os jovens sem família. Quatro nacionalidades — cubanos, nicaraguenses, haitianos e venezuelanos – se qualificam para uma “condicional humanitária” de rápida aprovação, que autoriza morar e trabalhar nos Estados Unidos por dois anos, mas só 30 000 desses vistos são expedidos por mês. “São medidas positivas, mas que trazem apenas alívio temporário”, diz Mark Jones, professor de ciências políticas da Universidade Rice, em Houston. “Temos um sistema ultrapassado, que não foi projetado para lidar com tantos pedidos.”
Os imigrantes que fazem fila na fronteira são diferentes da maior parte dos brasileiros, por exemplo, que cruzam a divisa escondidos, vivem na ilegalidade e rezam para não ser deportados. Vítimas da miséria, da violência e dos desmandos ditatoriais que grassam abaixo do Rio Grande e se agravaram com a pandemia, eles se sentem aptos a tirar partido da legislação americana que oferece asilo — e, eventualmente, green card — a indivíduos perseguidos em qualquer circunstância, seja política, racial, social ou econômica. Nos últimos meses, o México constatou a presença na rota de imigrantes não só da América Latina, mas também de regiões distantes, como Rússia, Turquia e Índia.
Imigração é tema que racha a opinião pública e os políticos americanos. Na linha de frente da restrição à entrada estão os governadores do Texas, Greg Abbott, e da Flórida, Ron DeSantis, defensores de expulsões sumárias e de gestos apelativos, como despachar ônibus lotados para cidades mais liberais, como Washington e Nova York. No outro extremo, alas progressistas do Partido Democrata defendem uma abordagem mais humana e o fim das expulsões. No meio do caminho, Biden e a vice Kamala Harris, que ele encarregou de cuidar do problema e que fracassou solenemente na missão, tentam pôr alguma ordem no sistema com medidas que fazem lembrar a linha dura de Donald Trump. Para complicar, a maioria republicana na Câmara dos Deputados se dispõe a barrar qualquer lei mais abrangente. “A profunda reforma de que precisamos só pode ser alcançada através de um acordo bipartidário, e não há chance de isso acontecer”, diz Lydia Guzmán, presidente da ONG United Latin American Citizens. Com 20 milhões de solicitações em atraso e a fronteira lotada de homens, mulheres e crianças sem rumo, a crise migratória nos Estados Unidos não tem prazo para acabar.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2023, edição nº 2842