Falta combinar com os russos: os próximos passos do acordo para cessar-fogo na Ucrânia
Enquanto ucranianos e americanos debatiam o armistício, os dois lados buscavam reforçar sua posição militar

Com seus representantes reunidos em torno de uma mesa nos portentosos salões do palácio real em Jedá, na Arábia Saudita, transformado em palco de negociações para o fim de uma guerra que se desenvolve a quase 5 000 quilômetros de distância, Estados Unidos e Ucrânia selaram uma reaproximação, depois de uma tão inflamada quanto vexaminosa briga na frente das câmeras, anunciando uma proposta de cessar-fogo imediato de trinta dias, durante o qual serão definidos os termos de um acordo de paz definitivo. Aceita pelos ucranianos, a proposta, como esperado, foi recebida com ressalvas por Vladimir Putin. “A ideia do cessar-fogo em si é correta e nós certamente a apoiamos, mas há questões que precisamos discutir”, disse. Apesar das incertezas ainda reinantes, a impressão deixada pelo encontro é de que Kiev cederá, Moscou sairá ganhando, a Europa seguirá à margem das discussões e Trump cantará vitória como promotor do fim do conflito que já dura três anos. Enquanto isso não acontece, cada personagem cumpre seu papel da maneira que pode.
Encostado nas cordas pela dupla Donald Trump-JD Vance na malfadada coletiva no começo do mês, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky tentou reagir e só piorou a situação, levando um raivoso Trump a suspender a entrega de ajuda militar e o compartilhamento de dados de inteligência — duas armas cruciais na guerra contra o invasor russo. Zelensky percebeu seu erro, reiterou sua confiança nas negociações “sob a firme liderança” americana e prestigiou a reunião em Jedá (da qual não participou) encontrando-se posteriormente com o anfitrião, o príncipe saudita Mohammed bin Salman. MBS, como é chamado, que já foi pária internacional por sua atuação no assassinato de um jornalista saudita, hoje exercita com gosto uma desconhecida veia pacificadora: seu palácio também foi sede em fevereiro de um encontro de russos e americanos para discutir o conflito na Ucrânia.
Em Jedá, Rubio reiterou, como já fizera Trump, que os ucranianos terão de ceder as áreas que a Rússia ocupou — cerca de um quarto do país, aí incluída a Crimeia, anexada à força em 2014. Mas, feitas as pazes com Zelensky, os Estados Unidos voltaram a entregar ajuda militar e informações sigilosas, com Trump dando meia-volta e fazendo ameaças a Vladimir Putin caso não aceite a trégua proposta. “Posso exercer pressões financeiras devastadoras para a Rússia”, declarou o senhor de todas as bravatas.

O documento elaborado em Jedá não menciona qualquer garantia de proteção militar futura para a Ucrânia contra uma possível nova ofensiva russa — exigência de Kiev que os aliados europeus se propõem a atender na forma de uma força de paz, mas da qual Putin não quer nem ouvir falar. “A negociação, quando houver, será extremamente complexa”, avalia Jesse Driscoll, professor de ciência política da School of Global Policy and Strategy, em San Diego, Califórnia. “Praticamente todas as demandas da Rússia estão sendo atendidas. Os ucranianos dificilmente vão aceitar isso sem lutar.”
Enquanto ucranianos e americanos debatiam o armistício, os dois lados buscavam reforçar sua posição militar. A Rússia bombardeou Kiev, provocando incêndios em pelo menos quatro bairros da capital. Dois dias antes, a Ucrânia havia empreendido um ataque massivo de drones contra alvos em Moscou, o maior desde o início da guerra, que resultou na morte de ao menos três pessoas. No campo de batalha, Putin fez uma visita-surpresa à província de Kursk, da qual os ucranianos conseguiram ocupar um naco no ano passado e agora, cercados, estão perdendo terreno — a maior cidade em seu poder acaba de ser retomada. O chefe do estado-maior da Rússia, Valery Gerasimov, anunciou que 430 soldados ucranianos foram capturados em Kursk e serão tratados como terroristas — sendo a troca de prisioneiros um dos muitos pontos de divergência entre as duas partes. “Não está claro quais são os detalhes contidos na proposta americana nem o quanto ela já foi discutida com a Rússia”, diz Tetyana Malyarenko, professora de segurança e relações internacionais na Universidade Nacional de Odessa, na Ucrânia.
A declaração conjunta em Jedá deixa a Europa de fora dos próximos passos do processo de paz, agravando o ressentimento despertado pelas agressões americanas a Zelensky na Casa Branca, entendidas pelos líderes europeus como uma ruptura de fato da aliança que uniu os dois lados do Atlântico desde a Segunda Guerra. “A Ucrânia é uma questão que reflete a nossa própria segurança”, diz Norbert Röttgen, membro alemão do Parlamento Europeu. “Se ela cair, toda a Europa estará em perigo.” Nesse contexto, um cessar-fogo de trinta dias, e ainda é preciso ver se realmente funciona, será extremamente bem-vindo, mas é prazo apertado para desmanchar todos os nós no caminho da paz duradoura.
Publicado em VEJA de 14 de março de 2025, edição nº 2935