Explosão da imigração ilegal nos EUA vira pedra no sapato de Biden
Por isso mesmo, o tema ganha destaque na campanha de Trump, que hoje boicota todos os esforços para controlar a fronteira
No rachado Congresso americano, foram necessárias duas tentativas para que a Câmara dos Deputados, onde os republicanos têm pequeníssima maioria, aprovasse na terça-feira 13 o que a oposição vinha brandindo como ameaça há tempos: pedir o impeachment de Alejandro Mayorkas, secretário de Segurança Interna, com base na crise migratória na fronteira com o México — o primeiro contra um membro do gabinete em 150 anos. Mayorkas é acusado de “quebra da confiança pública” por sua “recusa intencional e sistemática” a cumprir as leis de controle da imigração. Até as estátuas do Capitólio sabem que a acusação não se sustenta e o processo será barrado no Senado, onde os democratas têm ínfima maioria. O propósito da bancada trumpista é fazer do pedido de impeachment um megafone para o incessante fluxo de estrangeiros entrando irregularmente no país e assim prejudicar as chances do presidente Joe Biden no embate com Donald Trump pela Casa Branca.
A multidão sem documentação é o segundo motivo de preocupação mais citado pelos eleitores, atrás apenas da economia. Faltando nove meses para a eleição, criou-se o paradoxo: de um lado, os democratas, historicamente inclinados a acolher imigrantes, buscam de todas as maneiras achar um jeito de restringir seu acesso, e, de outro, os republicanos, manifestamente refratários às “hordas invasoras”, fazem de tudo para derrubar as tentativas do governo de controlar a fronteira. Mais de 6,1 milhões de pessoas foram detidas ao entrar ilegalmente nos Estados Unidos durante o governo atual, o maior contingente de todos os tempos. No auge, em dezembro passado, foram 302 000, praticamente 10 000 por dia (desde então, graças principalmente a controles implantados pelo México, a média caiu pela metade). “É uma desgraça o que Biden está fazendo com nosso país”, dispara Trump a cada novo comício de campanha. Segundo pesquisa da rede de TV NBC, a retórica dura contra os ilegais rende a Trump trinta pontos de vantagem sobre Biden, a maior diferença entre os temas analisados.
Espremendo ao máximo sua vantagem, os congressistas trumpistas há meses condicionam um novo pacote de ajuda a Ucrânia e Israel à imposição de barreiras à imigração. No começo de fevereiro, um projeto de lei bipartidário, arrancado a duras penas, chegou ao Senado contendo a maior parte das exigências da bancada. Desancado por Trump, que o declarou insuficiente, acabou bloqueado antes de ser analisado pelo plenário.
Ciente dos riscos que o assunto representa, Biden prepara uma ordem executiva, que independe de aprovação do Congresso, para endurecer as regras. Entre outras medidas, o pacote adiciona 4 bilhões de dólares ao orçamento de segurança e cria um limite de 4 000 pessoas pedindo asilo por dia — acima desse teto, a fronteira se fecha completamente. A crise da imigração começou a escalar em 2018, impulsionada por pessoas que fugiram dos desastres naturais, da violência descontrolada, da pobreza e da repressão política na América Central. A Casa Branca de Trump fez acordos com México e Guatemala para intensificar o patrulhamento e estancou o problema. Em 2020, a pandemia fechou fronteiras e Trump usou uma lei sanitária contra o coronavírus para deportar automaticamente quem entrasse em solo americano sem documentação. Biden assumiu em 2021 prometendo medidas mais humanas para conter a crise — o que de novo fez explodir a migração. A legislação trumpista expirou em 2022 e, de lá para cá, a marcha dos ilegais foi engrossada por cubanos, venezuelanos, haitianos e até refugiados de nações distantes, como Índia e China. “Eles usam rotas arriscadas, como a selva de Darién, entre a Colômbia e o Panamá, região controlada por traficantes”, diz Madeline Hsu, historiadora especializada em imigração da Universidade de Maryland.
Assoberbado e sem recursos, o sistema de controle migratório nos últimos tempos virou ferramenta para quem cruza a fronteira ilegalmente: em vez de tentar fugir dos agentes, as pessoas se entregam, sabendo que serão fichadas e liberadas para permanecer no país à espera de uma audiência, o que leva em média mais de quatro anos. Diante da insatisfação da opinião pública — 70% dos americanos reprovam a gestão da crise —, resta a Biden repisar, comício a comício, a campanha movida pelos trumpistas para bloquear controles migratórios. Na guerra da retórica, Trump, por enquanto, está ganhando.
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2024, edição nº 2880