Exaustos da crise, argentinos vão às urnas dispostos a aposta arriscada
A ascensão de um outsider sem laços com a máquina partidária tradicional está diretamente ligada ao caos econômico em que o país se afunda
Com trombones e trompetes, a charanga puxa a melodia de It’s a Heartache (It’s a heartache / Nothing but a heartache), de Bonnie Tyler, e a multidão responde em castelhano, mudando a letra: “Medo, a casta tem medo”. Casta é como o candidato a presidente da Argentina Javier Milei se refere a seus adversários, os políticos tradicionais que se tornaram, segundo sua visão, uma classe privilegiada de “ladrões”. O apelido pegou. Do alto de uma caminhonete, Milei, 52 anos (faz 53 no dia da eleição presidencial, em 22 de outubro, domingo), canta junto com seus milhares de apoiadores enquanto distribui autógrafos, muitos deles nas capas de seus livros exaltando ideias ultraliberais. No ápice, ergue a motosserra que simboliza um corte radical nos gastos públicos, aos gritos de “Viva a liberdade, carajo!”, usando palavrão que em castelhano não tem a virulência do português. A multidão vai ao delírio, em imagens feitas para postar nas redes sociais. “Estamos cansados e ele representa a mudança”, diz Franco Cuello, 22 anos, um dos muitos influencers pró-Milei, que chegou a perder um dente em briga com peronistas. “Odeio essa gente, mas amo esse chabón”, derrama-se.
Às vésperas do pleito, “Peruca”, como é chamado pelos apoiadores o candidato de cabeleira sempre despenteada, comanda o show que está empurrando a Argentina para um caminho pouco conhecido, semeando posições controversas no campo dos costumes e, sobretudo, brandindo a espada da dolarização total da economia. Perto dele, as duas outras trilhas abertas ao eleitor parecem esgotadas: à esquerda, o atual ministro da Economia, o kirchnerista Sergio Massa, e pelo centro, Patricia Bullrich, política linha-dura que foi ministra de Segurança. Ambos levaram um susto ao ver o partido de Milei, La Libertad Avanza, amealhar 30% dos votos e vencer as prévias realizadas em agosto, atropelando a coalizão de Massa, Unión por la Patria (28%), e a de Bullrich, Juntos por el Cambio (27%).
Patinando nesse meio de campo embaralhado, as últimas pesquisas apontavam para Milei e Massa se enfrentando no segundo turno, em novembro. “Milei tem conseguido entrar em redutos peronistas, como os municípios pobres da grande Buenos Aires”, diz o analista político Daniel Montoya, que não descarta a vitória do autointitulado anarcocapitalista no primeiro turno. “É como se Bolsonaro roubasse votos de Lula no Nordeste profundo.” Se Milei obtiver 45% dos votos válidos, ou mais de 40% com vantagem de 10 pontos percentuais para o segundo colocado, leva a contenda já agora.
A ascensão do outsider sem laços com a máquina partidária tradicional está diretamente ligada à crise econômica em que a Argentina se afunda há anos e que degringolou nos dois últimos meses, com a inflação anual batendo nos 138%, a maior marca desde 1989. “Cada vez que venho fazer compras, as coisas custam o triplo. A aposentadoria não dá para mais nada”, lamenta Manoel Aguilar, 72 anos, diante de uma barraca de verduras na Villa 31, uma das favelas mais populosas da capital. “Os políticos não se importam com a gente”, reclama. Quanto mais baixa a renda, menor o poder de compra e maior a insatisfação — e na Argentina de hoje o contingente dos desvalidos é uma chaga social exposta, com 40% vivendo abaixo da linha da pobreza e as ruas da capital portenha tomadas de gente dormindo na calçada e pedindo esmola.
Jogando lenha na fogueira da incerteza e da insegurança, Milei no começo do mês declarou na TV, no usual tom apocalíptico, que o peso vale agora “menos do que excremento”, insuflando uma corrida que fez o dólar romper a barreira dos 1 000 pesos no mercado paralelo. Desde 2019, a compra pela cotação oficial é limitada a 200 dólares por mês, mas o chamado blue corre solto. Sem instrumentos monetários para conter a alta, o governo apelou para a polícia e mandou fechar as cuevas, como são conhecidas as casas de câmbio clandestinas. A iniciativa de Alberto Fernández, o mais politicamente descamisado dos presidentes, de denunciar Milei por intimidação pública acabou dando mais impulso à sua candidatura.
Ao longo da campanha, Milei repisou que sua proposta da dolarização é de rápida e fácil execução. Ao colocar o peso para competir com a moeda americana no mercado interno, diz, fará com que a população tire os dólares do colchão e passe a utilizá-los no dia a dia, como já ocorre na aquisição de carros e imóveis. Pode até ser, mas será uma gota-d’água no movimento de troca da moeda que pode levar o país à bancarrota. Em paralelo, promete fechar o Banco Central, cortando pela raiz a possibilidade de impressão de pesos, e promover um ajuste fiscal da ordem de 15% do PIB. E mais: o “plano motosserra” pretende minguar drasticamente o número de ministérios, privatizar a saúde e a educação e acabar com os subsídios das tarifas públicas. “É um delírio que pode gerar hiperinflação, um problema sistêmico para os bancos e uma disparada da dívida”, critica Marina Dal Poggetto, professora de economia da Universidade Austral.
A maior parte dos especialistas encara com ceticismo os projetos econômicos de Milei em geral e a dolarização em particular, até pela falta de matéria-prima: não há dólares disponíveis. A medida poderia ainda achatar salários e encarecer a produção industrial, teclas em que os adversários têm batido com vigor. O peronista Massa, na assombrosa situação de candidato viável mesmo sendo ministro de uma economia em frangalhos, apela para propostas vagas no sentido de transformar a Argentina em uma grande nação exportadora. Bullrich fala em recompor as reservas internacionais gradualmente, operando com duas cotações de dólar simultâneas (atualmente são mais de vinte), enquanto promove um profundo corte de gastos.
Apesar da polêmica em torno de medidas econômicas, o que levou Milei para o topo foi mesmo a novidade e o talento em tirar partido dela. Pesquisa da AtlasIntel, a pedido de VEJA, mostra que 88% de seus eleitores acreditam que o país precisa de uma mudança radical e que as forças convencionais fracassaram. Só 3,5% o apoiam em função dos valores que propaga (contra o aborto, contra “marxismo cultural” e blá-blá-blá…) e 1,6% o escolheu pela ideia de dolarização.
O panorama de possível guinada preocupa o Brasil, de quem a Argentina é a quarta maior parceira comercial. Milei dispara bravatas como a de que não fará negócios com “comunistas” (aí incluído o presidente Lula), mas sua candidata a vice, Victoria Villarruel, e a economista Diana Mondino, cotada para ser chanceler, fizeram chegar ao Planalto indicações de que não vão sair do bloco econômico sul-americano e de que a centralidade das relações com o Brasil permanece. Pendurados no abismo, os vizinhos aguardam o próximo — e decisivo — capítulo do drama argentino.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864