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Eleições no Uruguai desafiam os 15 anos de poder da esquerda

Daniel Martínez, da Frente Ampla, é desafiado pelo conservador Luis Lacalle Pou, com quem deve disputar o segundo turno em novembro

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 19h36 - Publicado em 27 out 2019, 07h30

No poder há 15 anos no Uruguai, sob a batuta de Tabaré Vázquez e de José Mujica, a coligação de esquerda Frente Ampla se vê ameaçada pela primeira vez pelos conservadores nas eleições deste domingo, 27. Embora as pesquisas apontem a vitória de seu candidato, em número de votos, Daniel Martínez dificilmente escapará de um segundo turno ultracompetitivo em 24 de novembro. O Partido Nacional (PN), de Luis Lacalle Pou, se apresenta como o principal desafiante, e suas chances de vencer devem aumentar a partir dos resultados deste domingo.

Todas as últimas pesquisas apontam Martínez com cerca de 40% das intenções de voto – abaixo dos 50% para declarar-se vitorioso no primeiro turno. O PN permanece em seu encalço, a uma curta distância de 4 a 7 pontos. O candidato do Partido Colorado, Ernesto Talvi, de centro, tem cerca de 15%, e o militar de extrema-direita Guido Manini Ríos – o “Bolsonaro uruguaio” – do partido Cabildo Abierto, 12%. Na véspera das eleições, Talvi e Manini já vinham se agrupando para o segundo turno, em favor de Lacalle Pou.

Mesmo que Martínez, mais conhecido como El Pelado (o careca, em português), consiga dar um salto e vencer no primeiro ou no segundo turno, terá um governo bem mais complicado que o de seus antecessores Vázquez e Mujica. A tendência é de perda da maioria absoluta nas duas câmaras da Assembléia Geral pela Frente Ampla para seus adversários da direita.

A dificuldade de conseguir uma terceira reeleição pode parecer incompatível com o nível de sucesso da Frente Ampla na condução do Uruguai, o país mais democrático, rico em direitos, menos economicamente desigual e, em termos de renda per capita, mais rico da América Latina. Sob os nomes de peso de Tabaré Vázquez, atual presidente, e de José Mujica, o país moveu-se em uma linha progressista invejável, com a legalização do aborto, do comércio da maconha, do casamento gay e a aprovação da Lei Trans, que garante o direito à identidade de gênero.

Apesar desses avanços, o país se vê desafiado em duas questões-chave: a economia e a segurança. E ambos pressionam o eleitorado antes simpático à Frente Ampla. “Quando comparamos o Uruguai com os países ao redor, ele se destaca. Mas precisamos comparar o Uruguai consigo mesmo”, explica Leonardo Martín, professor de ciências sociais na Universidade ORT Uruguai, em Montevidéu. 

De fato, o Uruguai conseguiu manter-se em crescimento econômico, ainda que modesto, enquanto seus vizinhos bem mais poderosos sucumbiam em recessões e desempenhos mais desapontadores. Sua renda per capita continua a ser a maior da América Latina e Caribe – 17.100 dólares – e o dobro da do Brasil, o país mais rico da região, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas a taxa de expansão da atividade do país despencou de 7,8%, em 2010, para 1,6%, no ano passado, e levou o eleitorado a flertar com as propostas liberais do Partido Nacional.  

Durante esse período, a criminalidade no país também cresceu. Só em 2018, o Uruguai figurou entre as mais altas taxas de homicídio da América Latina, com 11,8 homicídios a cada 100.000 habitantes – atrás apenas de Venezuela, El Salvador, Brasil e Colômbia. Os roubos, por sua vez, escalaram de 9.280, em 2017, para 11.827, em 2018, o que representa um aumento de 27,4%.

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A violência em alta está relacionada a disputas territoriais entre narcotraficantes, que se intensificaram após a legalização da maconha por causa da redução do mercado. “A Frente Ampla falhou em oferecer uma solução para esse problema. É seu grande calcanhar de Aquiles. Por isso, o eleitorado se volta à direita, que propõe endurecer as leis contra criminosos”, diz Pedro Isern, sociólogo e autor do livro “Contratos, direitos, liberdades e cidadanias”.

Junto à eleição presidencial, os uruguaios também votarão um referendo chamado “Viva Sem Medo”, que propõe a militarização da segurança nacional. O Partido Nacional de Lacalle Pou é o maior representante da proposta.

Bolsonaro uruguaio

O receio de uma possível recessão econômica e a insegurança social aumentam o flerte do eleitorado com a direita. De forma semelhante ao Brasil, a bancada evangélica, que está ganhando influência no PN sob o apelo da “restauração dos valores familiares tradicionais”, lidera a oposição ao governo da FA. A esquerda teme que, se perder as eleições, suas conquistas na área dos direitos sejam revertidas.

“No partido Cabildo Abierto, liderado pelo ex-general Guido Manini Ríos, alguns dos principais candidatos foram acusadas de torturar prisioneiros políticos durante a ditadura. É a primeira vez que o Uruguai tem o fenômeno de um partido com raízes militares de extrema-direita na política institucionalizada”, afirma Alexandra Lizbona, professora do Departamento de Ciência Política da Universidade da República, em Montevidéu.

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Apelidado pela imprensa de “Bolsonaro uruguaio”, o ex-general foi demitido no início do ano do Exército por Vázquez por ter atacado ao sistema judiciário. Sua campanha ganhou apoio com a simples promessa de restaurar a “ordem” no país.

Former General in Chief of the Uruguayan Army, Guido Manini
Guido Manini Ríos, ex-general e candidato à presidência do Uruguai: ataque à Justiça e promessa de restaurar a ordem – 4/09/2019 (Maurício Zina/Getty Images)

Segundo Lizbona, a direita uruguaia está menos forte do que parece e ainda pode sair perdendo as eleições porque a população uruguaia está de olho no que se passa do outro lado das fronteiras com Brasil e Argentina, e do outro lado da Cordilheira, no Chile. A falta de habilidade do presidente Mauricio Macri ao tratar dos desafios econômicos do país, o caos do governo de Jair Bolsonaro ao lidar com os incêndios na Amazônia e a insatisfação dos chilenos com as políticas do presidente  Sebastián Piñera fazem com que o Uruguai considere a direita com extrema cautela.

As manifestações recentes recentes no Chile, em princípio, favoreçam Martínez e os demais candidatos da FA.

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Ainda assim, o Uruguai é um caso à parte. Verónica Pérez, professora de ciência política da Universidade da República, faz a ressalva de que o sistema político é muito forte no país, e a população tem grande confiança nas instituições democráticas.  “Os uruguaios têm muito interesse por política, e nossos governos têm legitimidade”, diz.

No país onde se tromba com o presidente num café e os governantes se afastam da suntuosidade, mesmo se a direita ganhar, não haverá riscos institucionais no horizonte.

O respeito à democracia foi oficializado, inclusive, pelos próprios candidatos antes de iniciarem as campanhas eleitorais. Todos os partidos assinaram um pacto político contra a disseminação de informações mentirosas, e um dos resultados desse acerto foi a criação de um portal não-partidário de verificação dos fatos, o “Verificado”. A campanha transcorreu sem grandes escândalos e sem destaque para as fake news.

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Caso a população opte pelo “seguro e conhecido” neste domingo, para evitar seguir os vizinhos pela estrada das crises políticas e econômicas, será o quarto mandato consecutivo da Frente Ampla, algo sem precedentes no país. Mas haverá mudanças profundas na forma de governar, já que a FA esteve fechada em si mesma por quase 15 anos e terá de se abrir à negociação.

“Nesse cenário, é improvável que a FA ganhe com maioria parlamentar, ao contrário dos outros mandatos, o que obriga a coligação a se articular com outros partidos”, diz o professor Martín.  

Se Lacalle Pou ganhar, o retorno do Partido Nacional à Presidência após 20 anos exigirá do presidente a habilidade de  malabarista. Lacalle terá de conciliar as demandas da FA e seus eleitores, as de diferentes alas dentro do próprio PN e as daqueles que o apoiarem em um provável segundo turno. Inclusive a extrema-direita de Manini Ríos.

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