Eleição acirrada nos Estados Unidos é retrato de uma nação rachada ao meio
Disputa expõe uma nação onde o conservadorismo empunhado por Trump se revela enfronhado em diversos setores da sociedade — e resiste
Se o processo de apuração de eleições presidenciais dos Estados Unidos é tenso em qualquer situação, ele é ainda mais asfixiante quando a diferença entre os dois candidatos é mínima. Passados dois dias e duas noites da votação de 3 de novembro, a de maior suspense em muito tempo pela intensa radicalização dos dois lados, até o fechamento desta edição, na quinta-feira 5, às 20 horas, os americanos ainda não sabiam quem seria o novo presidente. O democrata Joe Biden aparecia com mais chances: faltando acabar a contagem em seis estados, precisava levar apenas dois para chegar aos almejados 270 votos no Colégio Eleitoral. O republicano Donald Trump penava para alcançar o número mágico de modo a prorrogar por outros quatro anos sua vulcânica atuação na Casa Branca.
O clima era de nervosismo e excitação, e não poderia ser diferente em um pleito que expôs a polarização que racha hoje os Estados Unidos. “Não estou aqui para declarar que vencemos, mas para informar que, quando a apuração terminar, acredito que sairemos vencedores”, disse Biden, em mensagem aos eleitores. Trump, enquanto isso, esperneava, no Twitter e nos tribunais, contra o “ROUBO” (assim, em maiúsculas) de cédulas. Com a respiração suspensa, os americanos — e boa parte do mundo — seguiam voto a voto o desenrolar de um processo que pode encerrar os quatro assombrosos anos de um governo imune a regras estabelecidas, agressivo, petulante, torpe e, sim, muitas vezes mal-educado. A própria vantagem apertada entre os candidatos, porém, antecipa que Trump pode até ir embora, mas o populismo nacionalista que ele cultivou e do qual se alimentou seguirá vivo e insidioso.
Polarizada até a última máscara (quem usa apoia Biden, quem não usa é Trump), a eleição americana promoveu cenas como as que são vistas apenas em republiquetas de bananas, com a Casa Branca cercada por uma proteção à prova de escaladas e tapumes protegendo as vitrines das lojas e escritórios nas grandes cidades, como Washington e Nova York. O 3 de novembro transcorreu pacífico, com manifestações controladas, mas a demora na apuração acabou por levar os dois lados às ruas. Multidões pró-Biden marcharam aos gritos e faixas de “Contem todos os votos”, frase que ganhou hashtag e se espalhou pelas redes sociais, em reação ao esforço republicano para interferir na apuração, com choques e violência em Portland e outras cidades. Do outro lado, a tropa trumpista desfilou pelos quatro estados-chave na fase final da contagem — Nevada, Arizona, Geórgia e Pensilvânia —, despejando ameaças e atos de intimidação. As imagens contribuíram para reforçar a preocupação com o que está por vir por aí. Reeleito Trump, como reagiria a fatia da sociedade que não o suporta e o movimento antirracista, cada vez mais forte, com o qual ele vive às turras? Eleito Biden, onde pararia a agressividade explícita do presidente que sai, mas ainda tem dois meses de mandato, e de seus fiéis apoiadores?
As pesquisas que deram margem significativa de vantagem a Joe Biden erraram — como já havia acontecido com Hillary Clinton em 2016 — porque subestimaram, de novo, o impacto do discurso trumpista na ala conservadora da população. Ganhe ou perca, Trump mostrou que seu nacionalismo agressivo somado ao desprezo pelas normas estabelecidas não é coisa passageira, que uma troca de presidentes vá mudar, mas sim uma concepção de liderança que fincou raízes na sociedade, ao atender a anseios escondidos que, com ele, vieram à tona. Eis seu legado, tendo permanecido quatro ou oito anos no poder. Ao que tudo indica, Trump não perderá a chance de se posicionar sempre no extremo, como seus apoiadores adoram e seus detratores detestam. George Bush, o presidente republicano que vivenciou o derretimento da União Soviética e a ascensão dos Estados Unidos como única potência, em 1990, tratou a mudança extraordinária com timidez e acabou esquecido, depois de não se reeleger. Antes dele, o democrata Jimmy Carter deixou a Casa Branca com baixíssima popularidade e se reinventou como respeitado ativista das boas causas. Trump não é nem um, nem outro — sua ambição, megalômana como é de seu feitio, reside em acirrar os ânimos. Conseguiu, e continuará na mesma toada.
O maciço comparecimento dos eleitores, por si só, evidencia a polarização que Trump insuflou entre os americanos. Com multidões nunca vistas enviando votos pelo correio e fazendo fila diante das urnas antes e no dia da eleição, Biden conquistou mais de 72 milhões de votos populares, batendo o recorde de Barack Obama, que levou 69,5 milhões em 2008. Até a tarde da quinta-feira 5, ele acumulava 4 milhões a mais do que Trump, vantagem maior do que a obtida por Hillary Clinton há quatro anos. A superioridade da democrata, porém, não impediu que ela perdesse no Colégio Eleitoral. Um exército de advogados do Partido Republicano (rebatido por uma legião de democratas) já entrou com diversos pedidos de recontagem de votos na Justiça, e deve conseguir. Em princípio, as diferenças não são tão pequenas e as divergências não são tão polêmicas que permitam a algum recurso chegar à Suprema Corte, como aconteceu em 2000 com Al Gore, que na última instância acabou perdendo a Casa Branca para George W. Bush.
Ciente de sua condição de símbolo, acima de tudo, do grande contingente de americanos que está farto de Donald Trump, Biden, se eleito, promete pôr em prática uma vasta agenda progressista, talhada para abolir os princípios do trumpismo. Dela constam uma política antidrogas liberal — em consonância com a sociedade mais tolerante, que se manifestou contra a criminalização em diversos plebiscitos paralelos à votação para cargos eletivos (leia no quadro ao lado) —, investimentos maciços em sustentabilidade (com claros recados a Jair Bolsonaro e sua política para a Amazônia) e uma guinada nas relações internacionais que recoloque os acordos multilaterais no centro do tabuleiro. Biden prometeu que um de seus primeiros atos será a reinserção dos Estados Unidos no Acordo de Paris, revertendo a saída trompeteada por Trump há um ano e formalizada no exato dia da eleição. “Biden deve assumir uma postura bem mais diplomática, retomando a cooperação com aliados que seu antecessor dispensou, sobretudo na Europa”, diz Robert Shapiro, analista da Universidade Columbia.
A pré-candidatura do vice de Barack Obama (“Somos de lugares e gerações diferentes, mas rapidamente passei a admirá-lo”, elogiou o ex-presidente no último comício da campanha), que disputava a indicação democrata com duas dezenas de aspirantes, alguns bem mais carismáticos do que ele (o que não é difícil), foi atribulada. Mas quando a pandemia começou ele já havia se firmado como o preferido do establishment democrata para derrotar Trump. Ao longo de 2020, enquanto o presidente fazia pouco do novo coronavírus e do isolamento social, Biden subia consistentemente nas pesquisas ressaltando os desdobramentos trágicos no país: quase 10 milhões de contagiados (o ritmo atual, acelerado, está em 100 000 por dia), e 240 000 mortos, um recorde mundial. Trump lotava comícios, de rosto descoberto. Biden promovia encontros em esquema de drive-in e transmitia lives a partir do escritório no porão da sua casa. Chegava a passar dias sumido do noticiário. “Ele agiu certo: permaneceu concentrado em não fazer besteira”, analisa Hans Hassell, professor de ciências políticas da Universidade do Estado da Flórida. Empurrado pelo sentimento anti-Trump presente na imprensa, no mundo artístico e nos americanos mais influentes, inflado ainda mais pelo avanço da pandemia e pelo caos na economia — o maior trunfo de Trump —, que se esfacelou em poucos meses, o democrata passou a personificar a volta dos Estados Unidos ao bloco dos países respeitados e confiáveis. Quem poderia não querer uma reviravolta tão nobre? Pelo jeito, muita gente — mas muita gente também achou melhor ter Trump.
Contabilizada boa parte dos votos, o republicano não só manteve diversos bastiões que eram considerados passíveis de virada, como ampliou a votação em parcelas críticas da população. Teve, enfim, pelo menos 5 milhões a mais de votos do que há quatro anos. O aumento mais expressivo ocorreu entre os latinos, fatia demográfica que soma 18,5%, na qual o conservadorismo e a tecla da recuperação econômica falaram mais alto do que a batalha trumpista contra a imigração (que, por sinal, saiu dos trending topics do Twitter presidencial). Mudando o tom da primeira campanha, em que despejava insultos aos bad hombres, o presidente fez comerciais em espanhol e usou o sucesso Despacito (devagarinho) para ironizar o adversário um tanto apático. Ainda soube tirar partido de sua oposição a quarentenas e isolamento para firmar simpatias nas áreas rurais, prometendo reativação econômica aos redutos fiéis que sentiram com dureza os efeitos da pandemia. “Trump é mais bem avaliado do que Biden quando o assunto é crescimento econômico e soube explorar isso nos comícios, colocando-se como o presidente que cria oportunidades”, explica Charles Black, consultor de campanhas republicanas desde 1972.
Se os democratas ganharem, não será como eles queriam. Primeiro, porque a derrota acachapante de Trump não aconteceu. Além disso, a maioria no Senado, ao que tudo indica, continuará com o Partido Republicano — o que lhe dá poder para barrar qualquer reforma importante assinada por Biden. Uma análise feita a partir de doações individuais de campanha mostra Trump solidamente apoiado pelos eleitores com menos anos de estudo e mais rancor com os privilégios da elite: dos 600 milhões de dólares encaminhados ao Partido Republicano, a maior parte veio de trabalhadores da construção civil, caminhoneiros e donos de pequenos negócios. Já a fatia principal do 1 bilhão de dólares arrecadado pelos democratas saiu da conta de jovens urbanos com diploma universitário, ligados a empresas de tecnologia e a universidades de ponta. Os democratas passaram a campanha batendo na tecla de que, se mais gente votasse, eles ganhariam. Nesta eleição, o comparecimento foi recorde e eles, de fato, têm chance de vencer. Mas o outro lado, em vez de murchar, mostrou sua musculatura e a disposição de seguir chacoalhando as estruturas. Biden que se prepare: se de fato for eleito, os Estados Unidos que ele vai governar continuarão a exibir as marcas do furacão Trump. Elas estão estampadas em todas as listras e estrelas da bandeira nacional.
Colaboraram Caio Saad e Amanda Péchy
Publicado em VEJA de 11 de novembro de 2020, edição nº 2712