Deus é de direita ou de esquerda?
De forma geral, Deus, tal como entendido no mundo judaico-cristão, é de direita. De Israel, onde todas as correntes religiosas (com exceção de uma pequena minoria antissionista) são da linha dura, aos países europeus com governos refratários a receber imigrantes muçulmanos, existe um invisível traço em comum inspirado pela religião.
Ao irromper com renovado vigor na eleição presidencial, Deus experimentou um pouco mais de perto a famosa capacidade brasileira de bagunçar o coreto. Nos dois extremos mais distantes que é possível imaginar, plantaram-se o Cabo Daciolo e o magnicida fracassado Adelio Bispo de Oliveira. Tão diferentes, esses personagens têm dois pontos em comum: falam e agem em nome de Deus e militaram no PSOL. É difícil imaginar algum outro país com semelhante combinação.
O formidável Daciolo, que espalhou até entre os incréus o “Glória a Deusxxx” pronunciado à carioca e teve quase 1,5 milhão de votos, é deputado federal eleito pelo PSOL. O estranho não é que tenha sido expulso por infidelidade ideológica do partido de esquerda pura e dura, mas sim que nele tenha entrado. Embora seja preciso reconhecer que nem o mais exaltado psolista conseguiria lacrar um debate como Daciolo, ao reagir a uma cilada do sóbrio Henrique Meirelles com o famoso “os banqueiros como o senhor ficam torturando e matando o povo brasileiro”. Meirelles respondeu que é bancário, como se esse tipo de diálogo obedecesse à lógica humana. Ficou atrás de Daciolo na eleição.
O infame Adelio, que se expressa muito bem, embora não no nível avançado do cabo, também invocou a potestade divina como motivo do atentado que poderia mudar a política brasileira. “Quem mandou foi o Deus aqui em cima”, respondeu no primeiro momento depois da facada quase letal. E quem mandou os advogados, viajando em avião particular? Nesse caso não vale invocar uma Linha Aérea Celestial.
Pior ainda, como se fosse possível, foi a apropriação indevida do divino nome por um elemento anteriormente conhecido como João Curador. Posar de homem santo enquanto perpetra as maiores infâmias tem castigos previstos em vários círculos do Inferno de Dante, incluindo os destinados aos que cometem os pecados de avareza, luxúria, ira, heresia, violência e falsas profecias. Sem contar os artigos do Código Penal.
Para o teólogo Reza Aslan, americano de origem iraniana, o homem criou Deus à sua imagem e semelhança. “Inconscientemente, não conseguimos deixar de imaginar Deus como uma versão divina de nós mesmos. Quando concebemos a ideia de Deus, inconscientemente, inatamente, imprimimos sobre Deus nossa personalidade, nossas virtudes, nossos vícios, nossas fraquezas e nossas forças. Projetamos sobre Deus nossos preconceitos e nossas intolerâncias.”
Aslan, que perdeu um programa de televisão quando tuitou críticas a Donald Trump com palavrão no meio, é o tipo de intelectual que, num caminho inverso, projeta nos crentes os próprios preconceitos e entende apenas metade da história. Deusxxx nos livre.
Publicado em VEJA de 2 de janeiro de 2019, edição nº 2615