De amor a política: o que papa Francisco revelou em sua última e mais sincera autobiografia
No livro 'Esperança', o pontífice aborda política, homossexualidade e até paixões da juventude

O papa Francisco faleceu na manhã desta segunda-feira, 21 de abril, aos 88 anos, em Roma, depois de um pontificado de doze anos. Em sua autobiografia Esperança, publicada em dezembro do ano passado, o pontífice deixou de lado o tom solene que costuma cercar os líderes da Igreja e mostrou quem era o homem por trás da batina.
O livro, escrito em parceria com Carlo Musso, editor de diversos títulos anteriores do chefe da Igreja, seria publicado só após a morte de Francisco, mas o próprio papa mudou de ideia. Segundo Musso, que assina a obra como coautor, tanto o Jubileu de 2025, ano especial para os católicos que costuma ocorrer a cada 25 anos, quanto “as exigências do tempo” convenceram o papa a publicar a autobiografia em vida.
Em Esperança, o Santo Padre se apresenta como “um pecador a quem o senhor olhou com misericórdia” e relembra momentos pessoais, escolhas difíceis e até paixões da juventude.
O conclave e a política
Nos bastidores do conclave que o elegeu papa em 2013, Jorge Mario Bergoglio escreveu que não se via como favorito. Ele atribuiu sua eleição a um discurso proferido nos debates que antecedem a votação, em que defendia que a Igreja não poderia ser autorreferenciada e deveria se abrir às periferias, fossem geográficas ou existenciais, como se referia aos recantos esquecidos da alma. Ao ser sondado por um colega se aceitaria o cargo, foi evasivo: “Hoje, neste momento da Igreja, nenhum cardeal pode dizer não…”.
O papa também lembra que se recusou a usar calça branca sob a batina e brincou: “Não gosto de me fantasiar de sorveteiro.”
Francisco narrou encontros e articulações com chefes de Estado, como Mahmoud Abbas, da autoridade palestina; Shimon Perez, de Israel; Vladimir Putin, da Rússia; Volodymyr Zelensky, da Ucrânia e Aiatolá Al-Sistani, em uma visita ao Iraque, em que o serviço secreto identificou duas tentativas de assassinato. As visitas foram sempre voltadas para a promoção da paz. Questões atuais com os rumos da democracia, os caminhos da ciência e a Inteligência Artificial também integram o rol de suas preocupações.
Aborto e a homossexualidade
Não há qualquer menção ao aborto e a homossexualidade é tratada de maneira breve no livro. O papa fez questão de destacar que homossexuais e transexuais são bem recebidos por serem filhos de Deus e merecem o benefício do batismo, mas não narra a ferrenha campanha contra a legalização do casamento gay que promoveu na condição de cardeal em Buenos Aires, o que o levou a bater de frente com a então presidente do país, Cristina Kirchner.
Francisco queria ser lembrado como alguém que tentou fazer a fé dialogar com o mundo real — mesmo que isso incomodasse.
Primeiro amor
Em um dos poucos relatos sobre sua infância, vivida no bairro portenho de Flores, espécie de reduto dos imigrantes italianos em Buenos Aires, Francisco conta que se declarou a uma garota em uma carta adornada com uma casinha branca que seria a morada do futuro casal. Seus planos, no entanto, foram frustrados pela mãe da menina que costumava enxotá-lo com a vassoura cada vez que ele se aproximava da pretendente.
A aproximação máxima que o jovem Bergoglio teve com pessoas do sexo oposto foi um tango, bailado em encontros no bairro de Palermo.
Leia um trecho do livro Esperança:
Quase todos me desaconselharam a fazer essa viagem, que seria a primeira de um pontífice a região devastada por violências extremistas e profanações jihadistas: a covid-19 ainda não dera trégua, e até mesmo o núncio naquele país, o monsenhor Mitja Leskovar, acabara de testar positivo para o vírus. Acima de tudo, todas as fontes evidenciavam perfis de risco de segurança elevadíssimos, tanto que atentados sangrentos afligiram a região até a véspera da partida. Mas eu queria ir até o fim. Eu sentia que devia fazer isso. Eu apenas disse que sentia a necessidade de ir ao encontro de nosso avô Abraão, o ancestral comum de judeus, cristãos e muçulmanos. Se a casa de meu avô está em chamas, se em seu país nossa família corre risco de vida ou a perdeu, a coisa mais certa a fazer e chegar lá o quanto antes. Além do mais, não era possível decepcionar mais uma vez aquelas pessoas que, vinte anos antes, não puderam abraçar Joao Paulo II, cuja viagem, com a qual ele desejara tanto inaugurar o Grande Jubileu de 2000, fora impedida por Saddam Hussein.
Eu me lembrava muito bem daquele sonho desfeito.
Lembrava-me igualmente bem da profecia do Papa Santo, que, três anos depois, já idoso e enfermo, tentara de tudo, entre apelos e iniciativas diplomáticas, para impedir a nova guerra que, pautada em mentiras sobre armas de destruição em massa nunca encontradas, multiplicaria as mortes e a destruição e afundaria aquele pais no caos, transformando‑o por décadas no covil do terrorismo. O povo e a Igreja iraquiana esperavam havia tempo demais.
[…]
Mossul foi como uma ferida no coração. Já do helicóptero, atingiu-me como um soco: uma das cidades mais antigas do mundo, que transborda história e tradições, que testemunhara ao longo do tempo a alternância de civilizações e fora o emblema da convivência pacifica de diferentes culturas no mesmo pais — árabes, curdos, armênios, turcomanos, cristãos e sírios —, apresentava-se a meus olhos como uma vastidão de escombros após os três anos de ocupação por parte do Estado Islâmico, que a escolhera como capital. Enquanto eu a sobrevoava, ela surgia como a radiografia do ódio, um dos sentimentos mais eficientes do nosso tempo, porque gera por si só os pretextos que o desencadeiam: a política, a justiça e sempre, de modo blasfemo, a religião. Criam-se motivações de fachada, hipócritas e provisórias. Afinal, como bem diz o belo poema de Wisława Szymborska, o ódio “corre sozinho”.
E mesmo após toda aquela devastação, o vento do ódio não havia se aplacado.
Avisaram-me assim que aterrissamos em Bagdá, no dia anterior. A polícia tinha repassado a Gendarmaria Vaticana uma notificação que chegara dos serviços secretos ingleses: uma mulher-bomba se dirigia a Mossul para se explodir durante a visita do papa. Um furgão também havia partido a toda velocidade com a mesma intenção.
A viagem prosseguiu.
Houve reuniões com as autoridades no palácio presidencial de Bagdá. Outras com bispos, sacerdotes, religiosos e catequistas na catedral sírio-católica Sayidat al-Nejat (Nossa Senhora da Salvação), onde onze anos antes foram massacrados dois sacerdotes e 46 fieis, cuja causa de beatificação está em curso. Em seguida, deu-se o encontro com os líderes religiosos do pais na planície de Ur, extensão deserta onde as ruínas da casa de Abraão confinam com a torre em degraus do maravilhoso Zigurate sumério: cristãos de diversas Igrejas, muçulmanos, tanto xiitas quanto sunitas, e yazidis enfim se reúnem sob a mesma tenda, no espírito de Abraão, a fim de recordar que a mais blasfema das ofensas e profanar o nome de Deus odiando o irmão.