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Cristina Kirchner: vice-presidente encara doze processos na Justiça

Chefia de esquema de corrupção, acobertamento de atentado terrorista e roubo de documento histórico estão na ficha da líder peronista

Por Caio Mattos Atualizado em 30 jul 2020, 19h36 - Publicado em 27 out 2019, 22h38

Cristina Fernández Kirchner foi eleita vice-presidente da Argentina neste domingo 27, com os 47,2% dos votos destinados à chapa capitaneada por Alberto Fernández. O resultado significa também uma vitória da emblemática CFK no campo jurídico. A ex-presidente e senadora mantém, no seu novo cargo, o foro privilegiado que a vem protegendo como parlamentar dos doze processos que responde na Justiça. Dentre eles, seis com pedido de prisão preventiva.

Não há dúvidas de que, embora pouco ativa nos comícios da campanha peronista, Kirchner foi a figura mais importante destas eleições. Até maio, quando surpreendentemente foi lançada a candidatura de Fernández à Casa Rosada, com a peronista como vice, todas as pesquisas a apontavam como potencial adversária do atual presidente, Mauricio Macri. A temperamental e briguenta Cristina manteve-se um passo atrás, lançou a oportuna autobiografia Sinceramente e embarcou várias vezes a Havana para estar com a filha, oficialmente em tratamento médico em Cuba. Mas teve de apresentar-se à Justiça, enquanto garantia os votos populares a Fernández.

Argentina holds general elections
Foto de Cristina Kirchner na multidão de eleitores peronistas: novo mito – 27/10/2019 (Ricardo Moraes/Reuters)

No último capítulo das novelas judiciárias de CFK, em setembro, o principal processo do escândalo dos Cadernos da Corrupção foi enviado a um tribunal de segunda instância de Buenos Aires para julgamento. Trata-se da “Lava Jato Argentina”, que estourou no início de 2018 graças às anotações de bordo de um chofer do Ministério do Planejamento Federal que levava e trazia malas de dinheiro repassados por empresários beneficiados pelo governo Kirchner para as autoridades envolvidas no esquema.

Presidente da Argentina entre 2007 e 2015, CFK foi acusada de liderar essa “associação ilícita”. Mais de 170 funcionários do governo e empresários estavam atrapados nessa teia de corrupção executada entre 2003 e 2015 e que, portanto, envolveu também seu marido, Néstor Kirchner, presidente argentino entre 2003 e 2007 falecido em 2010.

Apesar do pedido de prisão preventiva já expedido contra a atual vice-presidente, esse processo não tem data oficial para ser julgado. Segundo juristas consultados por VEJA, casos como esse demoram mais de um ano para ser concluído por causa do grande número de testemunhas. a serem ouvidas.

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O responsável julgamento em “primeira instância” dessa ação foi o juiz federal Claudio Bonadio, que a citou em um inquérito pela primeira vez em abril de 2016. Desde então, ele conduz outros quatro processos contra a ex-presidente da Argentina. Diferentemente do procedimento no Brasil, na Argentina, o juiz federal de “primeira instância” assume até certo ponto o papel da promotor e conduz investigações necessárias para tornar o caso mais robusto.

Bonadio também é o autor de todos os outros cinco pedidos de prisão preventiva contra Kirchner, que, por ser senadora, só pode ser detida com o aval da maioria do Senado, atualmente dominado pelos peronistas,  e depois de decisão da Suprema Corte. 

Não se pode definir quantos anos uma ação leva para chegar à Suprema Corte, mas podem chegar a décadas. O senador Carlos Menem, de 89 anos, ainda responde por casos ocorridos na época em que foi presidente da Argentina. Menem deixou o governo em 1999.

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Grande esquema de corrupção

Dentre as doze ações contra CFK, a mais avançada é o caso Obra Pública, que envolve o desvio de 46 bilhões de pesos de 51 projetos de infraestrutura na província de Santa Cruz, o feudo eleitoral dos Kirchner. As audiências do julgamento de segunda instância já começaram em maio deste ano e devem prosseguir a partir de 4 de novembro, uma semana depois das eleições.

Juristas como Martín Irurzun e Eduardo Farah, da Sala II da Câmara Federal portenha, acreditam que a caso Obra Pública esteve conectado a outros dois – Los Sauces e Hotesur -, como um amplo esquema de corrupção em Santa Cruz, todos vinculados aos negócios hoteleiros e imobiliários da família Kirchner. Ambos já foram enviados à segunda instância, mas não há data de início das audiências.

Figura chave para entender essa conexão é o empresário Lázaro Báez, proprietário da construtora Austral Construcciones. Báez foi o principal beneficiado no desvio de verba do episódio Obra Pública. Em troca, ele e outros empresários favorecidos pelos governo de CFK e de seu marido, retornavam parte dos fundos ilegais para a própria conta pessoal do casal. Para isso, reservavam díarias nos hoteis da família ou alugavam imóveis em valores exponencialmente maiores aos de mercado.

No primeiro caso, Báez e outro empresário, Cristóbal López, pagaram respectivamente 15 milhões de dólares e 5 milhões de dólares pelos serviços da Los Sauces S/A, entre 2006 e 2017. As cifras equivalem a 63% e 24% do total faturado por essa companhia de Néstor e Cristina em sua história. Báez também alugou 935 quartos por mês no Hotesur, a rede hoteleira pertencente aos Kirchner desde 2008, entre 2010 e 2011

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Devido à semelhança dos esquemas, os casos Los Sauces e Hotesur foram assumidos por um mesmo tribunal federal de Buenos Aires, o de número 5. A unificação de ambos os processos atrasaria o início das audiências para o ano que vêm e a conclusão do julgamento para 2021, afirma o jornal argentino La Nación.

Começa o julgamento de Cristina Kirchner, ex-presidente da Argentina - 21/05/2019
Cristina Kirchner durante audiência de processo sobre desvio de verba de obras públicas: gestos medidos – 21/05/2019 (Daniel Jayo/Getty Images)

Amia 

Os outros dois processos judiciais contra CFK são referentes a medidas tomadas por seu governo nas áreas de política monetária e das relações exteriores. Ambos igualmente serão julgados em segunda instância, mas sem data de início marcada até o momento.  Na ação Dólar Futuro, a ex-presidente é acusada de causar prejuízo de 54 milhões de pesos aos cofres públicos com a assinatura de contratos de venda futura de dólares a uma cotação do passado. O objetivo seria, segundo as autoridades, “manter artificialmente baixo o valor do dólar”.

O mais impactante do ponto de vista humanitário é o processo sobre o Memorando de Entendimento com o Irã, que envolveu um trauma na  história recente do país platino: o atentado a bomba contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), em Buenos Aires, em 1994. Oitenta e cinco pessoas morreram nesse que foi o ataque terrorista mais letal da América do Sul.

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Acordo bilateral assinado em 2013 sobre cooperação na investigação do atentado, o memorando gerou suspeita por causa dos laços do Irã com o grupo xiita libanês Hezbollah, considerado potencial autor da tragédia. Em janeiro de 2015, o promotor Alberto Nisman denunciou Kirchner e seu então ministro das Relações Exteriores, Héctor Timerman, de “tomarem decisão criminal de fabricar a inocência do Irã para satisfazer interesses comerciais, políticos e geopolíticos”. Nisman foi assassinado quatro dias depois, em seu apartamento em Buenos Aires.

Juristas consultados pela VEJA criticam ambas as medidas tomadas pelo governo de CFK, descrevendo o memorando como “uma das piores”. Mas, ressalvam que não se pode considerá-las como crimes. O processo Dólar Futuro foi uma decisão econômica e política, e o memorando foi assinado pelo poder Executivo e ratificado pelo Legislativo”. 

No caso Irã, a ex-presidente responde a pedido de prisão preventiva também.

Carta de San Martín 

Três das seis causas restantes contra Kirchner, que não foram ainda enviadas a julgamento em segunda instância, são desdobramentos dos Cadernos da Corrupção, como o esquema de propina no setor ferroviário, que tramita com pedido de prisão preventiva, e o uso da frota aérea presidencial para fins pessoais

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Ainda no desenvolvimento dos Cadernos, a terceira ação envolve o roubo de um documento histórico. Na residência da ex-presidente na cidade de El Calafate — no sul argentino, a quase 3.000 quilômetros de Buenos Aires —, a polícia encontrou uma carta desaparecida há 38 anos. A correspondência havia sido escrita pelo libertador argentino, o general José de San Martín, em 1835 a Bernardo O’Higgins, um dos patriarcas da independência chilena.

Segundo Kirchner, ela ganhou o documento, que havia sido roubado da Biblioteca Nacional de Chile, como presente do presidente russo Vladimir Putin. CFK ainda responde a outros três processos relacionados ao seu governo: formação de cartel em obras públicas, irregularidades na renegociação de corredores rodoviários e a compra irregular de gás natural. Em todos esses três, ela é alvo de pedido de prisão preventiva.

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