Como a guerra na Ucrânia afeta a oferta de alimentos em todo o mundo
Da noite para o dia, Rússia e Ucrânia deixaram de exportar trigo, milho e cevada, com efeito imediato nos preços de itens como o pão
No calendário da Igreja Ortodoxa, a Páscoa neste ano cai em 24 de abril — o exato dia da triste lembrança de dois meses da decisão da Rússia de Vladimir Putin de pisotear tratados internacionais e princípios éticos e invadir a vizinha Ucrânia. No front, as notícias são desanimadoras. Comboios de tropas e armamentos russos se reagrupam na fronteira entre os dois países, em preparação para mais bombardeios e ataques, que elevarão a terrível conta de devastação e mortes de civis. Fora da zona de guerra, o cenário também é preocupante. O prolongamento da invasão incapacitou a rede produtiva e comercial de dois dos maiores produtores de alimentos do mundo. Da noite para o dia, Rússia e Ucrânia deixaram de exportar trigo, milho e cevada, itens básicos da cadeia global de suprimentos, com efeito imediato nos preços de itens como o pão, que no Brasil já subiu 20%. O custo dos alimentos no planeta teve um salto médio de 13% em março e chegou ao mais elevado patamar da história. E os problemas estão só começando.
Quando a agressão se concretizou, o mundo já estava mergulhado em uma espiral inflacionária por causa da pandemia e dos extremos do clima. A ausência no mercado dos cereais russos, por causa das sanções e do embargo econômico, e ucranianos, em decorrência da guerra, bem como do petróleo e dos fertilizantes com que a Rússia supre parte do mundo (veja quadro), entre outros produtos, acelerou a escalada da inflação, com os conhecidos efeitos deletérios. Um dos impactos mais comentados ocorre na oferta de fish and chips, o prato nacional do Reino Unido, composto de filé de bacalhau fresco empanado e batata frita. O bloqueio das importações de peixe russo fez o custo dos pescados do Mar do Norte disparar, o óleo de girassol produzido na Rússia e Ucrânia sumiu e até as batatas estão sendo afetadas pelo aumento dos fertilizantes. Resultado: previsão de fechamento de 3 000 das 7 000 lojas britânicas especializadas na iguaria.
Nos Estados Unidos, a despeito do baixo desemprego, o presidente Joe Biden tem a aprovação de apenas 41% dos americanos — por culpa da maior inflação em quarenta anos. Na França, a ultradireitista Marine Le Pen apropriou-se da indignação diante da carestia e encostou o presidente Emmanuel Macron contra a parede na campanha eleitoral (leia em Imagem da Semana, na pág. 14). São os países emergentes e pobres, porém, os mais prejudicados pelo alto custo da comida e dos combustíveis. O Centro para o Desenvolvimento Global de Washington, que analisa desigualdades sociais, estima que a guerra na Europa vá empurrar 40 milhões de pessoas para a pobreza, contingente que se somará aos mais de 800 milhões de miseráveis contabilizados na pandemia, quando essa trágica fatia da população aumentou 18%. “Estamos enfrentando o pior colapso alimentar desde a II Guerra”, diz David Beasley, diretor do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas.
Na Ucrânia, que tem metade do território coberto por plantações, os trabalhadores rurais foram recrutados para a frente de combate e as colheitas apodrecem, quando não são destruídas por bombas. Estradas atingidas por bombas ficaram intransitáveis e portos cruciais como o de Odessa, no Mar Negro, suspenderam as operações. Só aí, ao menos 60 milhões de toneladas de grãos deixaram de ser comercializadas, afetando a mesa de 400 milhões de pessoas em cinquenta países, a maior parte na África e no Oriente Médio, dois focos de extrema disparidade social. A vulnerabilidade desse canto do globo ficou patente em 2008, quando outra escalada no custo da comida provocou as revoltas em série da chamada Primavera Árabe.
Sinais alarmantes de insatisfação já se fazem presentes. Egito, Marrocos e Tunísia monitoram protestos diários nas grandes cidades. Em Sri Lanka, a carestia insuflou forte mobilização popular contra o governo. Na Turquia e Argentina, os governos restringem as exportações para tentar frear a inflação. “A guerra da Ucrânia expôs o custo de um grande conflito no mundo globalizado”, diz Derek Headey, do International Food Policy Research Institute (IFPRI), de Washington.
Em geral, choques desse tipo são atenuados pela lei de mercado: vendo o preço nas alturas, os produtores são estimulados a expandir a produção e as safras seguintes acabam contendo a inflação. Desta vez, porém, o círculo não fecha porque os fertilizantes, motores da agricultura moderna, viraram artigos de luxo. O embargo econômico contra os maiores fabricantes mundiais, Rússia e sua aliada Belarus, fez o preço disparar 40%, atingindo em cheio potências agrícolas como o Brasil. O repasse do custo dos fertilizantes disseminou a inflação por toda a cadeia agropecuária, chegando à carne vermelha e ao frango. No Peru, o plantio da próxima safra foi prejudicado, revoltando os pequenos produtores, que são a base de apoio do presidente, o esquerdista Pedro Castillo. Somada aos custos dos combustíveis, a insatisfação levou milhares às ruas da capital, Lima, e só foi contida após o governo decretar estado de emergência. “Estamos em economia de guerra”, afirmou Castillo, enquanto apelava por calma.
Segundo os economistas, só uma cooperação concreta e efetiva conseguirá minimizar os danos impostos pela invasão da Ucrânia e conter a ameaça de que, em pleno século XXI, a fome e a miséria se alastrem pelo mundo. As potências agrícolas teriam de liberar estoques e suprimir barreiras comerciais e os países ricos em petróleo precisariam produzir mais, para reduzir os custos de combustível e energia. Aos governos, caberia estender uma rede de proteção social por meio de distribuição de alimentos e ajuda financeira — “uma partilha de recursos parecida com a que foi posta em prática no auge da pandemia”, explica Kalle Hirvonen, economista do World Institute for Development Economics Research. Acima de tudo, é necessário que esta guerra desastrada acabe logo, de uma vez por todas.
Publicado em VEJA de 20 de abril de 2022, edição nº 2785