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Como a economia mundial sente os efeitos do ataque de Putin à Ucrânia

Invasão causa destruição e pânico, e Biden e aliados reagem com sanções. Além das lamentáveis mortes, ação traz desdobramentos econômicos pelo planeta

Por Ricardo Ferraz, Caio Saad Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Luana Zanobia Atualizado em 4 jun 2024, 12h34 - Publicado em 25 fev 2022, 06h00

Às 5h40 da manhã da quinta-feira 24, o presidente russo Vladimir Putin apareceu na TV, sentado em seu gabinete com uma bateria de telefones ao lado e bandeiras da Rússia atrás, e calmamente anunciou: “Decidi pôr em marcha uma operação militar especial”. Seu discurso nem tinha acabado e várias cidades da Ucrânia, inclusive a capital, Kiev, amanheciam sacudidas por fortes explosões. Eram mísseis russos dando partida à invasão repetidamente prenunciada pelos Estados Unidos, intimamente desacreditada por muitos líderes e reiteradamente negada pelo próprio Putin — essa última, uma fala oca, de um indivíduo que há semanas mente para todo o planeta. Assim a Europa, pela primeira vez desde o fim da II Guerra, há quase oitenta anos, se defronta com um aberto conflito bélico entre dois países. O ataque, por si só deplorável, sobe na escala dos atos inaceitáveis pela franca imoralidade de uma nação poderosa avançar sobre outra infinitamente mais fraca sem pretexto nem justificativa, a não ser a intenção de vê-la ajoelhada sob seu jugo.

AVISO - Putin: quem intervier verá “consequências jamais experimentadas” -
AVISO - Putin: quem intervier verá “consequências jamais experimentadas” – (./AFP)

Como se previa, Putin invadiu usando a desculpa de defender da suposta fúria militar e governista ucraniana os moradores de Donetsk e Luhansk, duas regiões no leste da Ucrânia controladas por grupos separatistas financiados pelos russos que há poucos dias, convenientemente, declararam sua independência — um ato que só a Rússia reconhece. “Nosso objetivo é proteger pessoas submetidas a perseguição e genocídio. Lutamos pela desmilitarização e desnazificação da Ucrânia”, pontificou, ameaçando quem interferir com “conse­quências jamais experimentadas na história”. Aos ataques de mísseis se seguiram tanques e tropas avançando através da fronteira com Belarus, mais ao norte — onde forças russas se concentravam havia semanas — e escaramuças no bolsão separatista, onde mercenários russos vinham se infiltrando fazia dias. Confirmada a invasão, em Kiev e outras cidades a população apavorada tentava fugir de carro, de ônibus e mesmo a pé, provocando enormes congestionamentos. As primeiras notícias falavam de dezenas de mortos, entre eles civis.

Enquanto Putin estava na TV, o Conselho de Segurança da ONU se reunia em sessão noturna justamente para tentar retomar negociações. Pegos de surpresa, os presentes partiram para o bate-boca. “Isso é invasão”, bradou o representante ucraniano. “Não, é uma operação especial”, rebateu o russo. Em Washington, Joe Biden condenou a “guerra premeditada, que resultará em catastrófica perda de vidas e sofrimento humano”. “Os Estados Unidos e seus parceiros e aliados vão responder de modo unido e decisivo”, disse — o tipo de ameaça que até agora não teve efeito algum sobre Putin. O presidente francês Emmanuel Macron foi um dos que, sentado na ponta de uma mesa de 6 metros (distância obrigatória porque se recusou a fazer teste de Covid em Moscou, para não ceder amostra de seu DNA), tentaram argumentar com Putin na outra ponta. Saiu falando que alinhavara um diálogo e foi prontamente desmentido.

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O ataque foi censurado em boa parte do mundo. A Otan, aliança militar entre Estados Unidos e Europa criada para fazer frente à União Soviética e que virou um espinho na garganta de Putin, disse em comunicado que “as ações da Rússia apresentam séria ameaça à segurança e terão consequências geoestratégicas”. Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, prometeu, em represália, “enfraquecer a economia da Rússia e sua capacidade de modernização”. Houve exceções, porém. O governo de Jair Bolsonaro — que, no meio da crise, manteve uma estapafúrdia visita a Moscou e apertou a mão de Putin — limitou-se inicialmente a apelar para “a suspensão imediata das hostilidades e o início de negociações”. A China, que na crise engatou uma cautelosa aproximação com Moscou, evitou usar a palavra “invasão” e pediu “moderação” às duas partes.

DEFESA - Veículos militares da Ucrânia em movimento: desequilíbrio de forças -
DEFESA - Veículos militares da Ucrânia em movimento: desequilíbrio de forças – (Daniel Leal/AFP)

O bote da Rússia sobre a Ucrânia foi orquestrado de maneira clara e anunciada. Primeiro, Putin deslanchou um lento movimento de tropas na direção do país vizinho, que por muito tempo foi uma extensão dos desígnios do gigante ao seu lado e agora pende para a Europa Ocidental. De seu canto do ringue, Biden abriu relatórios da inteligência para provar que a Rússia se preparava para espremer o ex-aliado desgarrado, possivelmente com uma invasão. Em janeiro, o alerta americano subiu de tom: Putin inventaria incidentes que justificassem o avanço de suas tropas, e o terreno mais à mão era a área sob domínio dos focos separatistas pró-Moscou. Não deu outra. As “repúblicas” de Donetsk e Luhansk brotaram da noite para o dia e o Kremlin se comprometeu a defender sua soberania. O roteiro culminou com a invasão agora em curso. A primeira reação concreta de Estados Unidos e Europa, um dia antes do ataque russo, foi apelar para a principal arma a seu dispor, já que ninguém pensa em enviar jovens para morrer na Ucrânia: sanções econômicas, centradas por enquanto em restrições financeiras. Junte-se a elas a resposta clássica dos mercados a situações de crise — bolsas caindo e preços de commodities em alta, cujos efeitos podem chegar ao Brasil — e o resultado é uma onda de preocupação com o impacto de uma possível guerra sobre a economia mundial, fragilizada pela pandemia.

Na tentativa de apartar a Rússia do sistema econômico internacional, os Estados Unidos bloquearam transações internacionais de quatro grandes bancos, entre eles o VEB, espécie de BNDES local, e o PSB, responsável por 70% dos financiamentos dos projetos do Ministério da Defesa e do pagamento do soldo dos militares. Também vetaram a obtenção pelo governo de empréstimos no exterior. Um seleto grupo de magnatas próximos a Putin teve os bens congelados e ficou impedido de fazer negócios com empresas americanas. O Reino Unido, tradicional depositário de fortunas dos bilionários russos, anunciou punições contra três deles (e cinco bancos) e a União Europeia ampliou o leque, com uma lista de 23 indivíduos banidos de seu sistema financeiro que inclui ministros do governo e deputados.

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CIVIS NA MIRA - Ucraniana ferida: bombardeio de aviões russos atingiu prédios em várias cidades do país -
CIVIS NA MIRA - Ucraniana ferida: bombardeio de aviões russos atingiu prédios em várias cidades do país – (Wolfgang Schwan/Anadolu Agency/AFP)

Indo mais longe, a Alemanha cancelou a entrada em operação do gasoduto Nord Stream 2, obra de 11 bilhões de dólares com a qual Berlim sonhava garantir de vez seu suprimento de gás natural. A Gazprom, estatal russa de gás que financia a obra, entrou no rol de parceira comercial indesejável dos Estados Unidos. Do arsenal de punições, que estaria sendo preparado há meses, as mais radicais são a remoção da Rússia do sistema internacional de transações financeiras, o SWIFT, imprescindível para comprar, vender e emprestar dinheiro, e a proibição de negócios, principalmente na área de tecnologia, com empresas russas, o que afetaria a produção de computadores, veículos e uma vasta gama de itens. São medidas duras, é verdade, mas que têm uma contrapartida: trarão prejuízos para os dois lados.

Conviver com um ambiente de negócios hostil não é novidade para Putin. Em 2014, com a mesma desfaçatez e muito menos oposição, ele invadiu a Crimeia, província na ponta sul da Ucrânia, para “proteger” a população de maioria russa e, “a pedidos”, a anexou à Rússia. Na época, chegou-se a pensar que ele iria em frente com a campanha, instalaria suas tropas também na região dos separatistas e, no golpe final, derrubaria o governo — o primeiro pró-Ocidente eleito no país. A anexação da Crimeia também produziu sanções econômicas capazes de isolar a Rússia financeiramente e causar queda de 1,9% no PIB. Mas Moscou aprendeu a viver com elas e até a tirar partido da situação: a dívida externa caiu de 668,5 bilhões de dólares em 2013 para 478 bilhões no ano passado, cabendo apenas 5% ao governo, que no período acumulou uma confortável reserva monetária de 600 bilhões de dólares. “Não me lembro de um único dia em que nosso país não enfrentasse restrições do mundo ocidental”, lembrou, em tom de desdém, o embaixador russo nos Estados Unidos, Anatoly Antonov. “Aprendemos a trabalhar nessas condições. Não só a sobreviver, mas a nos desenvolver.”

REAÇÃO - Biden aponta sua arma: sanções econômicas cada vez mais duras contra empresas, bancos e pessoas —
REAÇÃO - Biden aponta sua arma: sanções econômicas cada vez mais duras contra empresas, bancos e pessoas – (Jim Watson/AFP)

Bravatas à parte, Putin segue firme em seu intento de esmagar o que chama de “governo fantoche do Ocidente” em Kiev — muito embora o presidente Volodymyr Zelensky, um ex-comediante novato na política e abertamente inclinado para o lado oeste da Europa, tenha sido eleito, em 2019, com 73% dos votos. Para isso, além do poder bélico, usa e abusa de duas outras armas: desinformação, torcendo fatos sem pudor algum, e ataques cibernéticos como o que incapacitou ministérios e bancos ucranianos há poucas semanas. A contenda do presidente russo com movimentos na direção do Ocidente não é nova, nem se restringe à Ucrânia. Obcecado em manter sua zona de influência e garantir a segurança nacional, ele não admite que nenhum país grudado à Rússia se descole de Moscou. Em 2008, com métodos parecidíssimos, invadiu a Geórgia, enquadrou o governo simpático à adesão à Otan e aferrolhou o país, que hoje tem a economia atrelada a Moscou.

A Ucrânia, maior e mais relevante no cenário geopolítico do que a Geórgia, achou que conseguiria romper os laços ao depor o governo pró-Rússia, em 2014. Mas errou ao subestimar o cinismo e o menosprezo pela verdade da motoniveladora putiniana. Em meio ao acirramento dos ânimos, o presidente foi à TV explicar que manter a Ucrânia sob a órbita russa é um movimento natural, visto serem os dois territórios uma coisa só, histórica e culturalmente. “A Ucrânia moderna foi criada pela Rússia bolchevique e comunista. Vladimir Lenin é seu autor e arquiteto”, proclamou, atribuindo seu descolamento da mãe Rússia ao vazio provocado pelo fim da União Soviética. Embora as duas nações tenham nascido da mesma fonte (sendo Kiev mais antiga que Moscou), tra­ta-se de uma reescrita tipicamente russa, já que os ucranianos votaram esmagadoramente pela separação em um plebiscito em 1991. No âmago da investida contra o vizinho está o sonho de Putin de recuperar no cenário internacional a relevância que Moscou viu derreter junto com a União Soviética. “Se países tivessem emoções, o sentimento predominante da Rússia seria humilhação pelo poderio perdido”, disse Ronald Suny, professor da Universidade de Michigan. “Para ela, a nova ordem mundial ainda está sendo formada.”

DISTÂNCIA - Macron e Putin na mesona: o presidente francês saiu falando em nova negociação, mas foi desmentido -
DISTÂNCIA - Macron e Putin na mesona: o presidente francês saiu falando em nova negociação, mas foi desmentido – (Sputnik/AFP)

Apesar de seu tamanho, a Rússia, comparativamente, tem uma economia modesta — metade da francesa, por exemplo. Mas sanções e bloqueios podem causar extensos estragos em alguns setores nos quais é grande exportadora, sobretudo energia e cereais (veja o quadro acima). Como reflexo imediato da invasão, a bolsa de Moscou, que já havia baixado ao menor nível desde 2008, com quedas superiores a 10%, voltou a cair, bem como as de Frankfurt, Paris, Londres, Nova York e Tóquio. A guerra agora pode representar um baque significativo para economias que começam a sair do abismo aberto pela pandemia. Nos Estados Unidos, a consequência mais preocupante é o impacto sobre a inflação, que chegou a 7,5% em janeiro, e a possibilidade de um afunilamento ainda maior do gargalo que atravanca o frete internacional. De longe, a mais afetada, porém, deve ser a Europa, maior parceira comercial da Rússia, que fornece boa parte do gás natural consumido na parte oeste do continente.

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Quase a metade (46%) da exportação russa do produto vai para 27 países europeus e para onze deles ela é vital. A invasão fez o preço do metro cúbico de gás saltar 56%, em meio a acusações de que Putin está apertando as torneiras como forma de pressão. “Bem-vindo ao admirável mundo novo, onde os europeus vão muito em breve pagar 2 000 euros por 1 000 metros cúbicos de gás natural”, tuitou Dmitry Medvedev, vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia e um dos braços direitos do presidente. “Fechar ou reduzir o fluxo dos gasodutos mexeria na segurança energética, econômica, social e política de vários países da Europa”, diz Ricardo Sennes, economista e sócio da consultoria internacional Prospectiva. Em um movimento estratégico, Putin tem estreitado as relações com a China. Em recado cifrado à Europa, Moscou e Pequim firmaram no início de fevereiro o compromisso de construir um sistema de dutos através da Sibéria que levará ao território chinês 10 bilhões de metros cúbicos de gás por ano e 100 milhões de toneladas de petróleo em dez anos.

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Outro nítido sinal de que a investida contra a Ucrânia tem potencial de provocar uma crise energética global foi o salto do preço do barril de petróleo, que passou de 100 dólares. No Brasil, a política de preços da Petrobras segue a cotação mundial, o que tem provocado sucessivos reajustes — e ajudado a catapultar a inflação. Em janeiro, o valor da gasolina subiu 4,8% e o do diesel 8%. Os especialistas ressaltam, porém, que altas no preço do petróleo serão em parte compensadas pela valorização da moeda brasileira diante do dólar, que nos últimos dias fechou em torno de 5 reais, cotação que não se via desde junho de 2021. “O aumento de preços das commodities, impulsionado pela retomada da economia mundial e agora afetado pela situação europeia, favorece os exportadores de matéria-pri­ma, como é o caso do Brasil, mas também gera pressão inflacionária”, diz Cristiane Quartaroli, economista do Banco Ourinvest.

PARADO - Nord Stream 2: por causa da crise, a Alemanha adiou a operação do novo gasoduto de ligação com a Rússia -
PARADO - Nord Stream 2: por causa da crise, a Alemanha adiou a operação do novo gasoduto de ligação com a Rússia – (Nikolai Ryutin/nord stream 2/.)

Outro mercado que deve ser atropelado pela guerra desencadeada por Putin é o dos produtos agrícolas. Por determinação da ONU, alimentos não podem entrar em sanções econômicas, mas um estado bélico tem potencial para embaralhar o fornecimento de trigo da Rússia, a maior produtora mundial — situação que se complica com a presença na equação da Ucrânia, a “cesta de pão” da Europa, grande produtora de trigo e milho. Igualmente incerto ficaria o suprimento de fertilizantes agrícolas, já contagiado pelo atual confronto: 62% do produto importado pelo Brasil vem da Rússia e os preços subiram, em média, 300% em um ano.

COMEÇO - Mascarados com a bandeira russa na invasão da Crimeia, em 2014: a anexação foi definitiva -
COMEÇO - Mascarados com a bandeira russa na invasão da Crimeia, em 2014: a anexação foi definitiva – (Genya Savilov/AFP)

Sob ataque, a Ucrânia decretou lei marcial, dispôs-se a distribuir armas aos civis e orientou a população a procurar abrigo seguro. Os Estados Unidos disseram que vão continuar abrindo ao público seus relatórios de inteligência — um dos poucos lances eficientes do lado de Biden, que à parte um confronto militar direto já descartado, não tem muito que fazer para peitar o czar todo-poderoso. A Otan informou que está enviando armas, helicópteros e equipamentos para reforçar a defesa dos países-membros próximos à zona de conflito. Avançando inexoravelmente e deixando um rastro de destruição, as forças russas iam consumando a ocupação do país logo no primeiro dia de invasão. “Há batalhas em todo o sudeste e no centro”, informou o Ministério de Assuntos Interiores, reportando 392 bombardeios e seis pontes cortadas. Analistas acreditam que elas só vão parar quando conseguirem derrubar Zelensky e substituí-lo por dois aliados certos: o deposto oligarca Viktor Medvechuk, em prisão domiciliar e cotado para a Presidência, e o deputado Yevgeny Murayev como primeiro-­ministro. Com a casa arrumada a seu gosto, Putin encerraria a guerra do forte contra o fraco — uma ação destrambelhada que voltou a banhar de sangue o solo europeu e pode causar graves prejuízos a economia global.

Publicado em VEJA de 2 de março de 2022, edição nº 2778

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