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Com recursos modernos, a colorização de registros históricos volta à tona

O centenário processo traz vida a cenas dos grandes conflitos mundiais

Por Luiz Paulo Souza Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 09h38 - Publicado em 7 jan 2024, 08h00

“Totó, tenho a sensação de que não estamos mais no Kansas”, diz Dorothy ao seu cãozinho de estimação, maravilhada com a explosão de cores vibrantes ao redor. O entusiasmo da personagem de Judy Garland em O Mágico de Oz (1939) era resultado de uma transformação. Ela acabara de sair de uma realidade entediante, cinzenta e monocromática, arrastada por um tornado enfeitiçado. As cenas estão no início do clássico filme dirigido por Victor Flemming, inspirado na série de livros de L. Frank Baum. Era a estreia no cinema americano do Techni­co­lor, um sistema de colorização em que as tomadas eram rodadas simultaneamente com três câmeras, cada uma carregada com bobinas de acetato tratadas em matizes diferentes — vermelho, verde e azul.

Na ficção, os tons começavam a ganhar espaço, avanço simbolizado por Oz. Contudo, nos registros jornalísticos e nos documentários, especialmente em torno das duas Grandes Guerras, o preto e branco ainda era a norma. Além de ser processo consagrado, mais barato e muito mais prático que o Technicolor, o claro-escuro tinha a característica adicional de tornar tudo mais sombrio e trágico.

2 FILME THEY SHALL NOT GROW OLD – TRINCHEIRA 1
DRAMA - Eles Não Envelhecerão, de 2018: nas trincheiras entre 1914 e 1918 (./Warner Bros)

Um movimento recente, o de colorização de cenas bélicas que aprendemos a ver em claro-escuro, em jogo de sombras, indica que pode haver dramaticidade tingida. O recém-lançado Vozes da Segunda Guerra, na Netflix — na trilha de Eles Não Envelhecerão (2018), da Amazon Prime, em torno da I Guerra, dirigido pelo neozelandês Peter Jackson —, pinta com cores vivas conflitos desbotados pela crueza das bombas. O efeito é o avesso do maravilhamento experimentado por Dorothy. O que brota é o desconforto, um incômodo, a descoberta de vida onde havia apenas morte.

Em Vozes da Segunda Guerra, o cineasta britânico Rob Coldstream escolheu momentos consagrados dos vários teatros de batalha espalhados pelos continentes entre 1939 e 1945 para colori-los e, assim, instalar o espectador diretamente nos locais onde aconteceram os eventos, seja no deque de um porta-aviões americano sob ataque de camicases japoneses, seja dentro de um tanque alemão da Divisão Panzer. É fascinante. Em Eles Não Envelhecerão, Jackson reuniu filmagens nunca antes vistas das trincheiras da Frente Ocidental entre 1914 e 1918. Com a ajuda de técnicos, tirou a palidez dos personagens retratados, soldados britânicos e alemães, para lhes conceder um pouco mais de humanidade. Disse o diretor, logo depois do ruidoso e bem-sucedido lançamento da minissérie: “Eles não viram a guerra em preto e branco, a presenciaram em cores”.

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3 CASABLANCA COLORIZADO X PB.jpg
CLARO-ESCURO - Casablanca: o tingimento do clássico, em 1988, fracassou (./Warner Bros)

A pintura digital — mais rápida e mais simples do que nos primórdios do cinema — envolve cuidadosa pesquisa em documentos históricos. “Não há um jeito mágico de descobrir as cores apenas ao observar as escalas de cinza”, diz a fotógrafa e colorista Marina Amaral. O esforço pela recuperação dos detalhes, a vida como era ela, porém, é visto com reserva, especialmente em tempos de notícias falsas e inteligência artificial. “A manipulação da imagem sempre foi uma preocupação”, diz Eduardo Morettin, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP. O nó: é correto manipular imagens datadas? Para além da reinvenção da verdade, ainda que inofensiva, brota um outro problema. O P&B embutia uma escolha. “As técnicas foram desenvolvidas para narrativas que pressupunham matizes de preto, branco e cinza”, afirma Luiz Fernando da Silva Jr., professor da ESPM. O belo Casablanca, de 1942, foi colorizado em 1988. Perdeu a graça. No caso das cores de guerras, o resultado é interessante. Trata-se de ver o passado com detalhes antes inexistentes.

Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874

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