Com Putin, sem Zelensky: o ‘plot twist’ de Trump na guerra da Ucrânia
Estados Unidos e Rússia se sentam à mesa para negociar entre si um acordo de paz do jeito que Putin quer. Zelensky não foi convidado

Ao invadir a Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia adquiriu status de erva venenosa na Europa e nos Estados Unidos, e o mais prudente era cortar contatos e manter distância. Praticamente aposentada na época, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), criada para fazer frente à extinta União Soviética, ressurgiu das cinzas e se tornou megafone de alertas para o absurdo fato de, em pleno século XXI, uma potência atacar um vizinho muito mais fraco e derramar sangue na Europa, continente assolado na história por dois conflitos de enormes proporções e onde se imaginava que isso nunca mais fosse acontecer. O cenário estava posto: Rússia de um lado, decidida a fincar pé no território ucraniano, e Estados Unidos e aliados europeus de outro, fechando questão na defesa da Ucrânia. A poucos dias de o conflito completar três anos, e contando-se um mês da vertiginosa confusão global promovida pelo novo governo de Donald Trump, a situação deu um duplo twist carpado.
Antes mesmo de iniciar qualquer negociação, o presidente americano — que em campanha prometeu acabar com a guerra em um dia — telefonou para o colega russo, Vladimir Putin, efetivamente rompendo o cordão de isolamento. Seu secretário da Defesa, Pete Hegseth, em visita à sede da Otan, em Bruxelas, qualificou de “irrealista” tanto a devolução do naco da Ucrânia ocupado por tropas russas quanto a adesão de Kiev à organização, cedendo por antecipação dois pontos de honra da Rússia. Isso posto, Estados Unidos e Rússia, representados pelos respectivos chanceleres, Marco Rubio e Sergey Lavrov, se encontraram em Riad, na Arábia Saudita, para abrir as conversas sobre o fim da guerra. Detalhe: a Ucrânia não foi convidada.
O presidente Volodymyr Zelensky, que pisa em ovos para não perder de vez o essencial apoio americano, reagiu afirmando que Trump vive em um “espaço de desinformação” e descartando resoluções das quais seu país não participe. Ouviu de Trump que é “um péssimo negociador” e que “nunca devia ter começado essa guerra” (declaração nonsense total) e ainda foi chamado de “ditador” (o mandato dele venceu em maio passado, mas o estado de guerra impede eleições). “Trump pensa que Washington e Moscou devem decidir o futuro da Ucrânia, uma visão de mundo que lembra o século XIX, quando a política global era moldada apenas por grandes potências”, diz Martin Smith, especialista em segurança da Real Academia Militar de Sandhurst.
A picuinha de Trump com Zelensky vem de longa data: no seu primeiro mandato, ele pressionou o recém-eleito presidente ucraniano a fornecer provas que incriminassem a família Biden em atos de corrupção no país, manobra mal-ajambrada que acabou desaguando no seu primeiro pedido de impeachment. Ao longo da injeção de 190 bilhões de dólares (500 bilhões, na conta de Trump) em ajuda militar na luta contra os russos, Zelensky foi sendo pintado pela direita americana como um aproveitador deslavado do dinheiro do contribuinte americano. Com tais credenciais, seu papel nas negociações de paz deve ser mínimo.

Ainda não está claro o que realmente Rubio e Lavrov puseram à mesa, mas a prioridade mais imediata parece ser um cessar-fogo, que entraria em vigor até a Páscoa. Isso congelaria as linhas atuais, com Putin dominando uma faixa na fronteira que corresponde a 20% da Ucrânia e mais a Crimeia, ao sul, anexada há onze anos, e os ucranianos se apegando a 0,002% da Rússia na região de Kursk, que ocuparam no ano passado (veja o mapa). “Não é a subjugação completa de Kiev que Putin desejava, mas mesmo assim é uma vitória para ele”, afirma Anna Arutunyan, do think tank Crisis Group.
Zelensky não tem margem de manobra, dada a precariedade de sua posição militar e o futuro incerto do apoio americano. Em troca de dinheiro para proteger e reconstruir o país, onde cidades inteiras foram devastadas, considera dar a empresas dos Estados Unidos acesso especial aos cobiçados minérios no subsolo de seu país, e cultiva o sonho de incluir em um acordo final o projeto de rediscutir a situação dos territórios cedidos. Da parte de Putin, há indícios de que defende uma cláusula para realizar eleições na Ucrânia, com o intuito de ejetar Zelensky do poder e substituí-lo por um presidente mais maleável.

No novo cenário arquitetado por Trump, cai no colo da Europa a responsabilidade por garantir a segurança da Ucrânia contra novos ataques russos (estão frescas na memória dos ucranianos as sucessivas violações dos acordos assinados com a Rússia após a anexação da Crimeia). Zelensky pediu 200 000 soldados europeus para montar uma força de paz, mas ninguém se comprometeu firmemente a aderir até agora. A única carta que parece estar na mesa em termos de segurança é a adesão da Ucrânia à União Europeia, à qual Putin já deu seu o.k. Convocados às pressas pelo presidente francês Emmanuel Macron, os principais líderes do Velho Continente — leia-se, os membros da Otan com as maiores capacidades bélicas — se reuniram em Paris em caráter emergencial, para discutir a agenda trumpista de favorecer a Rússia na busca da paz. Como um fantasma, soava nos corredores do encontro a lembrança do appeasement, ou apaziguamento, uma ferramenta diplomática de fazer concessões para evitar conflitos que o primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain tentou usar com Hitler em 1938, cedendo-lhe um pedaço da então Tchecoslováquia — e deu no que deu.
Também foi tema do encontro o movimento americano de se afastar, de forma inequívoca, de seus parceiros europeus históricos. Em seguida às chocantes concessões à Rússia para acabar com a guerra na Ucrânia expressas na reunião com o comando da Otan, o secretário de Defesa Hegseth declarou, sem rodeios: “A crua realidade estratégica impede que os Estados Unidos tenham como prioridade a segurança da Europa”. Dois dias depois, o vice-presidente J.D. Vance, representando seu país na Cúpula de Segurança realizada em Munique, torceu com mais força ainda a faca na ferida. Vance mal mencionou o conflito que está no centro das preocupações do continente. Em contrapartida, passou vinte minutos dando um pito na Europa, a quem acusa de graves “ameaças que vêm de dentro”, entre elas supostos atentados contra a livre expressão — a certa altura, mencionou uma investida contra “as liberdades básicas dos britânicos religiosos” — e falta de pulso firme no controle da entrada de imigrantes.

A fala do vice-presidente causou extremo mal-estar na plateia de líderes europeus, já incomodados com a ameaça americana de impor tarifas no comércio bilateral. A aliança transatlântica vai além do ato de Harry Truman ao assinar a criação da Otan, em agosto de 1949. Além de derrotar Adolf Hitler na Segunda Guerra, ela fincou as bases para a construção de uma ordem mundial alicerçada na cooperação e disseminou uma concepção social baseada em valores comuns como democracia, liberdade de pensamento e defesa dos direitos humanos. “Todos os participantes desta reunião percebem que a relação transatlântica entrou em uma nova fase”, declarou Donald Tusk, o primeiro-ministro polonês, aos colegas em Paris. No mapa que se desenha, a Europa vai ter que cortar um dobrado para preservar sua relevância e até mesmo a unidade que, há quase três décadas, tem sido sua coluna de sustentação.
Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2025, edição nº 2932