Cidades turísticas da Europa tomam medidas para restringir multidões
Impactados pelo sossego durante a quarentena, pontos concorridos começaram a repensar os efeitos do grande número de visitantes
Em 2019, as ruas exclusivas para pedestres de Veneza, a sereníssima, estiveram constantemente apinhadas — a cidade italiana recebeu 16 milhões de turistas, um recorde. No ano seguinte, zero. Fechada pela pandemia, a centena de ilhotas conectadas por pontes sobre canais no Mar Adriático viu, da noite para o dia, as multidões ser substituídas pela rara movimentação dos locais que se arriscavam a sair durante a quarentena. Livres do vaivém de lanchas e navios, as águas escuras ganharam tons de azul cristalino e os golfinhos reapareceram. Pela primeira vez em décadas, moradores e autoridades abriram os olhos para o desgaste do turismo sem controle e resolveram tomar providências. Com a Europa reabrindo fronteiras e se preparando para um renovado fluxo de viajantes no primeiro verão pós-vacina, que começa agora, Veneza está adotando um amplo programa de restrição e monitoramento de visitantes elogiado e aprovado, inclusive, em abaixo-assinado de famosos como Mick Jagger, dos Rolling Stones, e os cineastas Francis Ford Coppola e Wes Anderson.
O ponto central do programa é evitar o turismo predatório, de pessoas que chegam, tiram milhares de selfies e vão embora no mesmo dia, sobrecarregando a infraestrutura local sem contribuir efetivamente para a economia. Em abril, a prefeitura proibiu o desembarque em Veneza de passageiros de navios de cruzeiro — seu porto de parada tem de estar a no mínimo 10 quilômetros de distância do centro histórico, obrigando-os a tomar outras conduções até a cidade. Além disso, quem não pernoitar terá de fazer reserva antecipada de visita e pagar uma taxa (prevista para julho de 2020, a implementação da medida, diante do impacto econômico da pandemia, foi adiada para janeiro de 2022). É esperada também a implantação de um sistema de vigilância, a partir de dados de celulares e câmeras de segurança, destinado a controlar a entrada e impedir grandes aglomerações nos principais pontos turísticos.
Não foram só os venezianos que, durante a paralisação imposta pela pandemia, começaram a repensar os efeitos do turismo em suas cidades. Em Barcelona, na Espanha, a prefeita Ada Colau lançou o projeto “Como nunca antes”, em que convida os visitantes a se espalhar por bairros menos conhecidos (onde injetou 20 milhões de euros para ressaltar características locais), em vez de se amontoar na célebre região das ramblas. Com 15% de sua economia atrelada ao setor, a cidade vai oferecer ao 1 milhão de turistas esperados no verão o aplicativo Check Barcelona, que avisa por mensagem quais lugares estão saturados de gente e sugere circuitos alternativos, como restaurantes de comida catalã do bairro de Gràcia e idas às vinícolas da região de Penedès. “Certas cidades passaram a ser vistas apenas como cenário para fotos e diversão, o que gerou muita insatisfação entre moradores”, diz Claudio Milano, professor de antropologia da Universidade Autônoma de Barcelona.
Em Amsterdã, o combate ao turismo predatório é bandeira da prefeita Femke Halsema desde antes de a Covid-19 mudar a feição do planeta. Em 2019, a capital holandesa recebeu 22 milhões de visitantes, 25 vezes o número de moradores. Para controlar o barulho e a sujeira resultantes do intenso movimento a noite inteira, um dos projetos da prefeitura é desativar aos poucos as vitrines de mulheres seminuas do famoso Red Light District, bairro de prostíbulos e clubes de strip-tease, e transferi-las para outro local, fora dos limites da cidade. Também estão na mira de Halsema os cafés onde, desde 1976, se pode consumir maconha livremente: um projeto em andamento na Câmara de Vereadores restringe a frequência apenas aos moradores de Amsterdã, como forma de desestimular as visitas de um dia, com parada só para alguns baseados.
Outra providência tomada tanto na capital holandesa quanto em Praga, Budapeste e Viena é, na alta temporada, proibir as reservas de uma ou duas noites nas plataformas de aluguel por temporada, como o Airbnb. Moradores, de modo geral, não veem os turistas com bons olhos, mas o conflito se agravou nos últimos anos com a popularização de companhias aéreas de baixo custo, a ascensão de economias emergentes, como China, Índia e Brasil, e a facilidade de acomodação trazida pelo Airbnb e afins. Mas, para a Europa, o turismo é indispensável. Em 2019, os visitantes despejaram um recorde de 620 bilhões de dólares na economia da União Europeia, onde o setor é responsável por um em cada dez empregos, e a paralisação no ano passado resultou na dispensa de quase 4 milhões de pessoas. Se a retomada do setor vier a acontecer em bases mais civilizadas, as ruelas medievais e os monumentos seculares atropelados pelas invasões dos bárbaros vão agradecer.
Publicado em VEJA de 30 de junho de 2021, edição nº 2744