Beliscão nos mais ricos: o anúncio do imposto global sobre multinacionais
Após anos de negociação, tarifa foi destaque na reunião do G20 em Roma. E Joe Biden, defensor da medida, pode enfim cantar uma vitória
Declarações pomposas e vagas são o que se espera das reuniões de cúpula — rodadas de conversas articuladas mais para mostrar quem é quem entre os poderosos (nesse aspecto, o Brasil está escanteado) do que para debater ações concretas. O encontro do G20 em Roma, nos últimos dias de outubro, no entanto, rendeu uma rara medida prática: as maiores economias do planeta, depois de muita protelação, finalmente se uniram para anunciar a adoção de um imposto global único sobre o faturamento das grandes corporações.
O acordo, que prevê taxação de no mínimo 15% sobre empresas cuja receita ultrapasse 750 milhões de euros, conta com a assinatura de 136 países, ameaça penalidades a quem não aderir e deve começar a valer em 2023. Além de turbinar a arrecadação em boa parte do mundo, a iniciativa pretende desidratar a manobra das multinacionais de sediar partes de sua operação em nações onde a tributação é baixa e ainda dificultar as transações em paraísos fiscais. “Trata-se do maior avanço em matéria de tarifas internacionais em pelo menos um século”, elogia Reuven Avi-Yonah, ex-consultor do Departamento do Tesouro dos EUA e professor da Universidade de Michigan.
Os Estados Unidos, terra das grandes multinacionais, serão especialmente beneficiados pelo novo imposto, que deve arrecadar mundialmente 150 bilhões de dólares por ano. Não por acaso, a secretária do Tesouro americano, Janet Yellen, foi uma das mais ativas defensoras da proposta, pressionando sem cessar, desde o início do ano, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) a negociar o acordo definitivo, após quatro anos de discussões infrutíferas. Segundo ela, a medida porá em prática um sistema em que todos terão chance de arrecadar sua fatia e aumentará a contribuição das grandes corporações para o bem-estar da população — esta uma vantagem que ainda precisa ser comprovada. “O acordo não obriga os países signatários a investir as novas receitas em ações de alívio da pobreza. O dinheiro só vai reduzir a desigualdade se houver vontade política”, alerta Alexandre Pires, professor de economia e relações internacionais do Ibmec-SP.
Para o presidente americano Joe Biden, a aprovação do imposto — uma de suas promessas de campanha — representou uma rara vitória fora de casa, em meio à dura corrida de obstáculos dentro dela para levar adiante sua ambiciosa pauta socioeconômica. Em Roma, Biden, além de trocar figurinhas com seus pares, estendeu a mão para as pazes com o francês Emmanuel Macron, magoado com a parceria britânico-americana para fornecer submarinos nucleares à Austrália pelas suas costas, e se encontrou com o papa Francisco, que o apoiou no embate que vem travando com o conservador clero dos Estados Unidos na questão do aborto. De lá, foi a Glasgow, na Escócia, participar da conferência da ONU sobre mudanças climáticas. Encerrado o refresco europeu, Biden voltou para os problemas em Washington.
Aumento de impostos é justamente um dos pontos centrais do debate em torno do pacote trilionário com o qual o presidente quer marcar seu governo e, se tudo der certo, aumentar as chances de garantir maioria na Câmara e no Senado na eleição de novembro de 2022 — um resultado altamente improvável neste momento, impressão reforçada pela perda, na quarta-feira 3, do governo do estado da Virgínia, arrebatado pelo republicano Glenn Youngkin após dez anos de gestões democratas.
Batizada de Build Back Better (BBB), a iniciativa prevê uma expansão nunca vista dos benefícios sociais — ensino e saúde gratuitos, remédios subsidiados, licenças remuneradas, até uma espécie de Bolsa Família — e dos projetos de sustentabilidade, a ser bancada, principalmente, taxando-se os grandes conglomerados e os milionários. Saudado com fanfarra pela ala mais à esquerda do Partido Democrata, o projeto de 1,75 trilhão de dólares vem sendo torpedeado pelo flanco moderado, personificado na figura do senador Joe Manchin, da Virgína Ocidental, que é contra quase tudo o que está lá e cada dia arranca um naco das benesses previstas. Basta um voto contra, em qualquer das duas Casas, para a maioria do governo ir por água abaixo.
A expectativa de Biden é que o acordo anunciado na reunião do G20 ajude a destravar o impasse interno, impulsionando o apoio popular à ideia de tirar dos ricos para dar aos pobres e produzindo recursos que podem ser direcionados para financiar seu pacote. Detalhe: a taxa global de 15% também tem de passar pelo Congresso — pelas regras do pacto, ela precisa ser aprovada país por país. Por se tratar de um acordo internacional, o sim dos congressistas deveria estar assegurado — mas nada é certeza na situação atual. “O Partido Democrata está estudando a possibilidade de incluir a proposta aprovada no G20 no mesmo projeto de lei que regula o financiamento do Build Back Better, para acelerar sua aprovação, mas não há nenhuma garantia de que a estratégia vá funcionar”, diz Andrea Campbell, analista política do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Biden, pelo jeito, ainda vai ter de comer muito pão que Joe Manchin amassou.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2021, edição nº 2763