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Atentado na França reabre a ferida da intolerância

A decapitação, em plena luz do dia, de um professor que exibiu charges de Maomé na sala de aula dá a Macron uma chance de mostrar serviço

Por Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 14h46 - Publicado em 23 out 2020, 06h00

No ano em que tudo já parecia tão ruim, a França tem de engolir mais uma dose do terror embutido na radicalização religiosa. Na tarde da sexta-­feira 16, um professor de história e geografia, Samuel Paty, 47 anos, saía da escola em que lecionava em Conflans-­Sainte-Honorine, na região metropolitana de Paris, quando um desconhecido o abordou, enfiou nele uma faca de 35 centímetros e, após alguns golpes, o decapitou. Afastou-se um pouco, pegou o celular, tirou fotos do corpo e cabeça separados, postou no Twitter e foi embora. Um vizinho viu a cena e correu para tirar os filhos dali: “Não estávamos entendendo nada, só que tinha um homem decapitado na frente da nossa casa”. O assassino não demorou a ser localizado e morto pela polícia. Nos dias que se seguiram, manifestantes foram às ruas condenar a barbárie no tom de dor e indignação compartilhadas — “Nós somos Paty” —, que traduz a rea­ção da França à chaga, infelizmente bem conhecida, do extremismo.

Paty foi assassinado porque, em uma aula em setembro sobre liberdade de expressão, mostrou duas charges irreverentes sobre o profeta Maomé. Elas estavam entre as publicadas em 2015 pelo jornal satírico Charlie Hebdo, fato que desencadeou outro sangrento ato terrorista: doze pessoas foram massacradas na redação ou perto dela. Carregados pelo mesmo sentimento de ódio, dez meses depois radicais islâmicos fuzilaram 130 pessoas em diversos pontos de Paris, incluindo a casa noturna Bataclan. Desta vez, a vingança em nome da religião foi obra do imigrante de origem chechena Abdullah Anzorov, de 18 anos, na França há doze. Ele morava na Normandia e não conhecia nem o professor, nem os alunos. Ao que tudo indica, viu um vídeo postado pelo pai indignado de um aluno muçulmano de Paty e mandou a ele uma mensagem dizendo que ia tratar do caso “à minha maneira”. Anzorov viajou até Conflans-­Sainte-Honorine, pagou 300 euros para dois alunos lhe apontarem o professor e o matou. O governo deflagrou uma caçada a suspeitos do crime e também a indivíduos e instituições fichadas por incitação ao ódio religioso. Além de prender uma dúzia de supostos envolvidos, entre eles o pai que denunciou e os meninos que apontaram a vítima, prometeu ainda expulsar do país 231 extremistas (180 deles já na cadeia) e cortar recursos e influência de cinquenta instituições.

Com uma população de 5 milhões de muçulmanos, a maior da Europa Ocidental, a França se tornou um campo fértil para ressentimentos e extremismos. O presidente Emmanuel Macron esteve no local do crime, prestou homenagem a Paty e afirmou que “os terroristas não vencerão”. No início do mês, ele já havia anunciado um plano de ação contra o “separatismo islâmico”— bandeira da direita que encampou e que vê nos imigrantes radicais uma ameaça à cultura e aos valores franceses. “Macron está sob pressão máxima. O medo do terrorismo, a crise do novo coronavírus e a insatisfação social estão pondo seu governo em xeque”, diz Bertrand Badie, professor de ciências políticas da Universidade Science Po. Faltando um ano e meio para as eleições e com a popularidade abaixo dos 40%, apertar o cerco aos imigrantes pode dar ao presidente mais firmeza para atravessar o escorregadio terreno até o pleito.

Publicado em VEJA de 28 de outubro de 2020, edição nº 2710

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