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Ataque do Hamas a Israel convulsiona o Oriente Médio e põe mundo em alerta

Ao furar um bloqueio tido como inexpugnável e atirar contra civis indefesos, terroristas promovem um massacre e mostram que o planeta mudou

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 10h21 - Publicado em 13 out 2023, 06h00

O que era para ser um tranquilo sábado, dia sagrado do judaísmo, que neste ano coincidiu com o feriado de Simchat Torá (Alegria da Torá, em hebraico), se transformou em um pesadelo que Israel jamais esquecerá. Nas primeiras horas do dia 7, uma chuva de mísseis de intensidade inusitada (fala-se em até 5 000 foguetes), capaz de trincar o supostamente inviolável escudo de defesa antiaérea do país, lançada da Faixa de Gaza, enclave controlado pela facção palestina Hamas, alcançou Tel Aviv e arredores de Jerusalém, entre outras cidades. Enquanto a população corria para se abrigar das bombas, um segundo ataque, mais brutal, massacrou os moradores de duas dezenas de vilarejos e os jovens que viravam a noite dançando e se divertindo em uma rave no deserto, tudo a poucos quilômetros de Gaza, vítimas dos fuzis e metralhadoras de 1 500 invasores. Atônito, o mundo todo se perguntava: como isso pode acontecer no país que é considerado, entre todos, o mais informado e o mais preparado para conter o terrorismo, até por ser alvo dele diariamente? A resposta está, segundo analistas, na nova configuração do poder mundial, que deixa brechas para ações impensáveis.

O saldo da agressão do Hamas ainda está sendo computado, mas cinco dias depois somava 1 300 mortos, quase todos civis — o maior número de vítimas fatais em um atentado terrorista desde os 3 200 do 11 de setembro, em Nova York. Levando-se em conta a diferença de população, é como se mais de 25 000 brasileiros tivessem perdido a vida em questão de horas. Os hospitais atendiam 3 000 feridos e outras 150 pessoas foram sequestradas e levadas para o território palestino, em ações filmadas e postadas nas redes sociais para disseminar pânico — um componente extremamente sensível e dramático na carnificina que reabriu crateras, concretas e figurativas, no explosivo Oriente Médio. Nos próximos dias, a Israel resta o desafio de ao mesmo tempo agir sem comprometer essa barreira humana.

REAÇÃO - Gaza em chamas: cerco total e bombardeios israelenses em série
REAÇÃO - Gaza em chamas: cerco total e bombardeios israelenses em série (Jack Guez/AFP)

Passado o primeiro choque, as forças israelenses realizaram mais de 200 bombardeios diários sobre Gaza, faixa de terra que equivale a um quarto do município de São Paulo e tem 2,3 milhões de habitantes, uma das maiores densidades demográficas do planeta. Segundo o Ministério da Saúde palestino, ao menos 1 400 morreram nesses bombardeios. Assim, de surpresa, da noite para o dia, após décadas de relativa paz, o planeta viu explodir a segunda guerra de grandes proporções em menos de dois anos — consequência de uma nova e difusa ordem mundial. O ataque do Hamas se insere na sequência de atritos que vem chacoalhando a geopolítica global — além da invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022, entram na conta a expulsão de armênios pelo Azerbaijão, em setembro, e o nacionalismo cada vez virulento da Índia.

São, todos, produtos de uma era multipolar, fragmentada pelo jogo de interesses alimentado, de um lado, pela ascensão meteórica de uma China faminta de influência e, de outro, pela semiaposentadoria dos Estados Unidos do papel de polícia do mundo. Hoje em dia, os americanos não têm nem disposição nem interesse em ditar ordens e, principalmente, arcar com as consequências, o que não impediu que o presidente Joe Biden condenasse em termos emocionados “o mal em estado puro” que se abateu sobre Israel e enviasse armas para o aliado. É nesse cenário difuso, em que proliferam guerras civis (55), movimentos separatistas (cerca de sessenta) e muros nas fronteiras (setenta em 2019), que países e grupos terroristas se animam a atropelar a civilização para atingir seus objetivos. “Vivemos uma reorganização de poderes, em que os Estados Unidos deixam de se impor e novos atores sobem ao palco”, diz Roberto Uebel, professor de relações internacionais da ESPM.

mapa Israel

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As falhas na segurança de Israel e a desatenção para avisos de que algo grande estava sendo preparado devem afetar por muito tempo a confiança da sociedade israelense. Ao que tudo indica, o Hamas passou durante meses, em conversas interceptadas, a impressão de que estava mais focado em impor alguma ordem no território sob seu governo do que em confronto. Enquanto isso, montava seu arsenal e treinava seus militantes em segredo. Na madrugada do dia 7, em paralelo à barragem de mísseis, uma enxurrada de drones destruiu torres de comunicação, tanques e ninhos de metralhadoras postados na fronteira. Em seguida, escavadeiras abriram buracos na cerca de 6 metros de altura que separa Gaza de Israel e por lá entraram os primeiros comboios, que seguiram direto para as duas bases militares mais próximas, atirando e matando soldados e comandantes sem que tivessem tempo de soar alarmes.

GABINETE DE GUERRA - Netanyahu: governo de união contra o Hamas
GABINETE DE GUERRA – Netanyahu: governo de união contra o Hamas (Amos Ben-Gershom/GPO HANDOUT/EPA/EFE)

Pela cerca, de barco e de parapente, o grosso da tropa se espalhou e pôs-se a atirar indiscriminadamente, produzindo cenas dantescas. No Deserto de Negev, a 20 quilômetros da fronteira, uma edição da festa rave Universo Paralello, criada no Rio de Janeiro por Juarez Petrillo (que alugou a franquia a uma produtora israelense), pai do conhecido DJ Alok, virou campo fúnebre de 260 jovens, entre eles os brasileiros Bruna Valeanu, 24, e Ranani Glazer, 23. Em Sderot, a população foi caçada e alvejada rua a rua. Em Kfar Aza, a polícia achou os corpos de pelo menos 200 pessoas. “Faltam palavras para descrever a magnitude do que aconteceu”, diz o cientista político André Lajst, especializado em Oriente Médio. “Muita gente conhece alguém que morreu nos ataques.”

TRAGÉDIA - Jovem em fuga em rave no deserto: 260 assassinados a sangue frio
TRAGÉDIA - Jovem em fuga em rave no deserto: 260 assassinados a sangue frio (./Reprodução)
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O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu prometeu uma reação sem precedentes. “O que vamos fazer aos nossos inimigos nos próximos dias vai marcá-los por gerações”, afirmou. Netanyahu e a oposição formaram um governo de união nacional e criou-se um gabinete de guerra, o que aponta para combates prolongados. Além disso, 360 000 reservistas, um número inédito, se somaram aos 170 000 soldados da ativa e se preparavam para a invasão por terra da Faixa de Gaza — medida até hoje rejeitada para evitar o ônus da ocupação de um território hostil. O Ministério da Defesa ordenou cerco total. “Sem eletricidade, comida, combustível nem água — tudo está bloqueado”, afirmou o ministro Yoav Gallant. Político experiente, Netanyahu, pressionado há quase um ano por manifestações populares contra sua aliança com a extrema direita e um projeto de reforma para enquadrar o Judiciário, precisa correr contra o tempo para tentar se recuperar do baque. Terá trabalho. “As falhas certamente serão alvo de inquéritos implacáveis e isso vai impactar a imagem dele”, diz Sean Foley, do Middle East Institute. “Mas, se conseguir destruir o Hamas e tirar com vida parte dos reféns, pode reverter os danos.”

DESESPERO - Israelense sequestrada com dois filhos: pânico em vídeo
DESESPERO - Israelense sequestrada com dois filhos: pânico em vídeo (./Reprodução)

Considera-se indiscutível o papel do Irã, maior apoiador e fornecedor militar tanto do Hamas quanto da outra facção atuante em Gaza, a Jihad Islâmica Palestina, mas até agora não foi encontrado nenhum elo direto entre o ataque e o regime dos aiatolás. O plano do Hamas fez uso de técnicas militares, como a divisão de tarefas em pequenas células, e evitou ao máximo tecnologias rastreáveis, como celulares. “Eles aprenderam a lidar com o domínio tecnológico de Israel”, diz Amir Avivi, general aposentado e criador do observatório Fórum de Defesa e Segurança de Israel.

Na presidência do Conselho de Segurança da ONU desde o início do mês, o Brasil vem conduzindo reuniões de emergência a portas fechadas. Em Brasília, o presidente Lula fez um apelo para que os demais países intercedam no conflito. “É urgente uma intervenção humanitária internacional”, afirmou em comunicado. “É preciso que o Hamas liberte as crianças israelenses que foram sequestradas de suas famílias. É preciso que Israel cesse o bombardeio para que as crianças palestinas e suas mães deixem a Faixa de Gaza”. Cerca de 14 000 brasileiros vivem em Israel e outros 6 000 moram nos dois enclaves palestinos, a maior parte na Cisjordânia, região ocupada desconectada de Gaza. Desde o princípio dos ataques, mais de 2 700, a maioria turistas, pediram repatriação ao Itamaraty, desencadeando a maior operação de resgate já organizada pela diplomacia nacional — a Força Aérea programou cinco voos para o transporte de ao menos 900 pessoas. O primeiro pousou no Brasil na quarta-feira 11, com 211 aliviados passageiros a bordo. Mais complexa é a negociação para retirar 28 dos sessenta brasileiros que estão em Gaza e solicitaram ajuda. O ministro de Relações Exteriores, Mauro Vieira, conversa diretamente com o chanceler do Egito, Sameh Shoukry, sobre a abertura de um corredor humanitário.

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ALÍVIO - Brasileiros desembarcam em Brasília na quarta-feira 11: a maior operação de resgate da história do Itamaraty
ALÍVIO - Brasileiros desembarcam em Brasília na quarta-feira 11: a maior operação de resgate da história do Itamaraty (Evaristo Sá/AFP)

Na complexa linha de conexões em torno do Oriente Médio, o horror dos últimos dias deve reverberar em toda parte. No centro da movimentação, o Irã — inimigo jurado de Israel, que quer varrer do mapa, desafeto dos reis e xeques do Golfo Pérsico e amigo de grupos terroristas — declarou que não teve participação no ataque. Mas teme-se que a prevista campanha de aniquilação do Hamas provoque reação do Hezbollah, milícia controlada pelos aiatolás que atua no Líbano e tem poder de fogo muito maior do que os palestinos de Gaza, abrindo uma frente de guerra ao norte. De imediato, o conflito pôs em ponto morto um acordo que Biden costurava entre Israel e Arábia Saudita, dois inimigos históricos, com potencial de chacoalhar a relação de forças na região e isolar o Irã — sempre ele —, que disputa com os sauditas a liderança regional. Montada em petróleo e gás, a região é crucial para quem quer que alimente projetos hegemônicos, seja Estados Unidos, China — que investe pesado lá e neste ano tentou alinhavar uma aproximação entre Irã e Arábia Saudita — e até a Rússia, que sustenta o encalacrado governo da Síria, um pária que ganhou sobrevida na área por se aliar ao — de novo ele — Irã.

ECOS DO PASSADO - Dayan e Meir (à esq.): queda após vitória na guerra de 1973, em ciclo eterno de hostilidades que o Acordo de Oslo (à dir.) não rompeu
ECOS DO PASSADO - Dayan e Meir (à esq.): queda após vitória na guerra de 1973, em ciclo eterno de hostilidades que o Acordo de Oslo (à dir.) não rompeu (David Rubinger/CORBIS/Getty Images; David Ake/AFP)

A agressão do Hamas se deu exatos cinquenta anos e um dia depois do início da Guerra do Yom Kippur, em 1973, quando tropas árabes atacaram de surpresa no dia mais sagrado do judaísmo. As forças militares israelenses reverteram o baque inicial e ganharam a guerra, mas as falhas na segurança e o volume de baixas acabaram por provocar a queda da primeira-ministra Golda Meir e de seu ministro da Defesa, Moshe Dayan — episódio retratado no recém-lançado filme Golda, que deve estar tirando o sono de Netanyahu. Sob qualquer ângulo, o embate entre Israel e o Hamas representa um tremendo retrocesso. Os palestinos de Gaza, já em situação dificílima, antecipam mais privações e destruição, enquanto os da Cisjordânia preveem a ampliação de revoltas e choques com moradores de assentamentos judeus que já pipocavam pelo território.

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A comunidade judaica internacional alerta para o recrudescimento do antissemitismo — manifestações pró-­Hamas ocorreram em várias partes, no Brasil inclusive, e uma declaração do secretário-geral da ONU, António Guterres, pondo no mesmo pacote a condenação aos “ataques abomináveis do Hamas” e sua “angústia” com o cerco de Israel à Gaza, provocou polêmica. O assunto respingou até na campanha eleitoral americana, com Donald Trump culpando a suposta leniência de Biden pelo terror e prometendo banir a entrada de muçulmanos no país. Em meio às bombas e à dor, pouca atenção foi dada a outro marco histórico: o Acordo de Oslo, na Noruega, há trinta anos, quando o líder palestino Yasser Arafat e o primeiro-ministro israelense Yitzak Rabin apertaram as mãos para selar o que deveria ser uma nova era de paz. Durou pouco e agora parece mais longe do que nunca.

Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2023, edição nº 2863

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