As causas da agitação social que toma conta da Alemanha
Um governo vacilante abre espaço para que grupos extremistas se empenhem em mobilizar os alemães contra o sistema
Se, em tempos normais, sentar na cadeira de Angela Merkel já era ato de dar calafrios, que dirá agora, quando seu sucessor, Olaf Scholz — um chanceler hesitante que ainda não provou a que veio — tem de encarar uma guerra logo ao lado, uma ameaça de grave crise energética e uma população impaciente e insatisfeita com o governo. Uma pesquisa recém-publicada mostra que a popularidade de Scholz, que assumiu em dezembro, desceu a seu pior nível: dois terços dos alemães estão descontentes com a coalizão que comanda. A insatisfação alimenta previsões de que os próximos meses serão terreno fértil para manifestações populares insufladas por extremistas da direita e da esquerda, unidos na tentativa de desestabilizar o sistema — um “outono quente”, como vem pregando o escritor Götz Kubitschek, fundador do Instituto de Políticas Estatais, de extrema direita.
A agitação social é resultado direto dos últimos meses de turbulência econômica e alta sistemática dos preços. Scholz mal havia assumido quando a Rússia invadiu a Ucrânia e, inicialmente, foi elogiado por sua reação: deslanchou uma audaciosa reforma da defesa alemã, minimizada desde a II Guerra, prometeu livrar a Alemanha da dependência do gás russo (que supria 60% de suas necessidades, de longe o maior cliente na Europa) e empenhou apoio total a Kiev, com o aceno de envio de armas e equipamento militar. Pois nada de muito significativo aconteceu.
O rearmamento alemão está em ponto morto, a ajuda militar aos ucranianos pouco avançou e, antes que novos fornecedores fossem contratados, a Rússia promove intermitentes cortes no fluxo de seus gasodutos, fazendo os preços disparar e antecipando um inverno de escassez. Com a atividade econômica em queda, o Bundesbank, o banco central alemão, prevê recessão até o fim do ano. A inflação atingiu 8,5% em julho, devendo passar dos dois dígitos em breve. A alta anual do preço da energia elétrica passou de 600%, colocando pressão tanto sobre consumidores quanto empresas — há risco de que a falta de gás leve a fechamentos e dispensa de trabalhadores. Como se não bastasse, a forte onda de calor na Europa secou os rios, prejudicando transportes e comércio.
A expectativa é que o impacto dos problemas atuais siga forte até 2025, quando se espera que a Alemanha consiga dispensar totalmente o gás que vem da Rússia. “Os danos à economia têm sido imensos e os salários não acompanham a inflação”, aponta Marcel Fratzscher, do Instituto Alemão para Pesquisa Econômica, que assessora o governo. Scholz lançou um apelo aos outros membros da União Europeia para que economizem energia e transfiram o excedente para a Alemanha, mas não teve boa recepção — vários guardam ressentimento das receitas amargas impostas por Merkel em tempos de crise.
A potencial fogueira sob esse caldeirão de problemas vem sendo atiçada cada vez mais abertamente pelo partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD), que recupera popularidade depois do recuo nas eleições passadas, e pelo punhado de grupos radicais de esquerda e de direita que tentam formar uma “grande aliança” contra o sistema — uma tentativa de mobilização mais ampla e mais agressiva do que as manifestações que, há dois anos, chegaram perto de invadir a sede do Parlamento, em Berlim. “A confluência de fatores de estresse deixa a população insegura e ela se torna presa mais fácil para os extremistas”, ressalta Stephan Kramer, chefe de um braço regional dos serviços de inteligência. Motor da Europa, a Alemanha vê suas engrenagens se emperrar, sem lubrificação rápida à vista.
Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805