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As casas-gaiola de Hong Kong: cubículos do tamanho de uma vaga de garagem

O gargalo habitacional é um dos motores a empurrar uma parcela da população rumo à pobreza — e às ruas, contra o governo local e a China

Por Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 15h13 - Publicado em 8 nov 2019, 06h00

Imagine espremer em um espaço equivalente ao de uma vaga de garagem cama, livros, objetos — tudo o que você acumulou na vida. A equação parece impossível de fechar, mas é desse jeito que mais de 200 000 pessoas vivem hoje em Hong Kong, lugar conhecido pela economia livre de amarras burocráticas e, mais recentemente, pela onda de protestos contra o governo que varre as ruas há cinco meses. As imagens de famílias amontoadas em cubículos cuja área é delimitada por grades (daí o nome casa-gaiola) têm rodado o mundo e levantado uma questão que não quer calar: como é habitar uma dessas unidades? Resposta consensual: um inferno, com consequências devastadoras sobre a saúde física e mental que estendem seus efeitos à demografia.

Segundo a ONG We Care, que acompanha o drama das moradias nesse território semiautônomo da China, 40% sofrem de depressão e mais da metade das mulheres abriu mão de ter filhos. “A linha entre viver nesses apartamentos e na rua é muito tênue”, diz Geerhardt Kornatowski, especialista em urbanismo da Osaka City University, no Japão. Em geral sem janelas, eles se convertem em verdadeiras estufas no verão, quando registram temperaturas de 40 graus. O ar fica irrespirável e germinam doenças. A noção de privacidade desaparece nessas colmeias humanas: como as casas são fruto da subdivisão de imóveis, compartilham-­se banheiro e cozinha e esbarra-se o tempo todo com o vizinho de gaiola. Existem casas assim em outras partes da Ásia, inclusive no Japão, mas em nenhum local elas são tão numerosas e precárias. “Nada se compara à tragédia habitacional de Hong Kong”, enfatiza Kornatowski.

Uma explicação fácil para a proliferação desses cortiços asiáticos é a geografia da ilha, povoada por 7,4 milhões de pessoas e emoldurada por montanhas que limitam o espaço para construir. O relevo de fato engole um naco do território, mas mesmo assim sobra muita área livre. Aí vem o problema real: todas as terras são de propriedade do governo, que as libera a conta-gotas para as empreiteiras justamente para poder cobrar caro por elas e ainda impõe taxas raras de ver nos demais setores. As empresas, por sua vez, transferem a conta para a população. Há seis anos Hong Kong possui o metro quadrado mais inflacionado do planeta, em seguida vem Singapura. Em nenhum outro canto é tão árduo concretizar o sonho da casa própria: um cidadão de renda média precisa juntar o que acumula em vinte anos de salário para poder arrematar um quarto e sala por lá (veja o quadro abaixo).

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O gargalo habitacional é um dos grandes motores a empurrar os habitantes de Hong Kong rumo à pobreza, em que 20% hoje já estão — e às ruas, contra o governo local e a China. Na ponta abastada da pirâmide, encastela-se a maior concentração de pessoas com fortuna superior a 30 milhões de dólares do mundo (e muito mais espaço para morar). Adivinhe de onde elas emergem. Da construção civil, ramo lucrativo para alguns poucos felizardos que ganham em concorrências públicas o direito de fazer uso de tão disputadas terras. E assim vai se aprofundando a desigualdade — e, com ela, as insatisfações que fazem com que uma parcela da população não arrede pé das manifestações. Em meio a tanto sacolejo, na quinta-feira 31 Hong Kong entrou em recessão. “A revolta é disseminada e sem precedentes”, avalia Emily Lau, presidente do partido Democrata, o terceiro maior da ilha. Sem reação à altura, o governo liderado por Carrie Lam prometeu erguer um conjunto de ilhas artificiais que alojaria 1 milhão de pessoas no distante 2032. Se não houver uma reviravolta até lá, o destino de muitos será a vida subumana dentro de uma gaiola.

Publicado em VEJA de 13 de novembro de 2019, edição nº 2660

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