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Águas turbulentas: a briga pelo rio Nilo

A Etiópia começa a encher a represa de sua imensa hidrelétrica sobre o rio, ponto de atrito com os vizinhos e ameaça ao domínio milenar do Egito

Por Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 13h47 - Publicado em 24 jul 2020, 06h00

A construção da gigantesca hidrelétrica Grande Renascença Etíope, no norte da Etiópia, é uma das maravilhas da engenharia moderna, repleta de superlativos. Ao custo de 4,5 bilhões de dólares, a obra, iniciada em 2011 e agora na reta final, ostenta a maior barragem da África e a sétima maior do mundo. Quando entrar em operação, produzirá 6 000 megawatts de energia, pouco menos da metade de Itaipu, mas suficiente para abastecer a Etiópia inteira e mais alguns vizinhos — cerca de 200 milhões de africanos. Com tantos atributos, a hidrelétrica deveria ser celebrada em todos os recantos de um continente carente de quase tudo. No entanto, ela está no centro de uma disputa de potencial explosivo que se arrasta há anos, sem solução: postada sobre o Nilo, é acusada pelos dois países rio abaixo, Sudão e Egito, de representar uma ameaça inaceitável a seu abastecimento de água. A busca de um acordo foi intermediada por ONU, Estados Unidos e União Africana, sem sucesso. Nos últimos dias, a Etiópia pôs uma pedra irremovível no curso da negociação: começou a encher a represa.

Preencher o imenso reservatório é projeto para durar entre cinco e quinze anos, dependendo das chuvas, mas Egito e Sudão exigem mais: a garantia de que o prazo vai se estender por 21 anos, além do compromisso de abrir comportas sempre que houver ameaça de seca sazonal. A Etiópia, com a faca e as comportas na mão, endureceu nos últimos meses e recusa-se a assinar qualquer contrato. Limita-se a afirmar que sua represa não vai prejudicar nenhum país às margens do rio imenso, que nasce no sul da África e corta o continente até desaguar no Mediterrâneo — um percurso de cerca de 7 000 quilômetros que por muito tempo lhe deu o recorde mundial de extensão, até estudos recentes transferirem o título para o Amazonas, por coisa de 100 quilômetros de diferença.

Protagonista da história da humanidade, o Nilo provê água potável a 280 milhões de pessoas em onze países. Ele se torna mais caudaloso justamente quando se encontra com seus dois principais tributários, os rios Nilo Branco e Nilo Azul — este, a fonte de energia da hidrelétrica etíope. Seguindo o rumo norte, o Nilo atravessa o Deserto do Saara e banha o Egito inteiro. Suas enchentes regulares preparam a terra para a agricultura, suas águas abastecem as torneiras e 95% dos 100 milhões de egípcios dependem do rio para sobreviver. “O Nilo é uma questão de vida ou morte para nós”, definiu o presidente Abdel Fattah el-Sisi (que Donald Trump já qualificou de “meu ditador preferido”). É mesmo, mas a disputa atual pelas águas do rio dos faraós vai além de sua importância local — ela perpassa o primeiro desafio sério à posição do Egito de “dono do Nilo”, reforçada pelas potências coloniais em acordos que dão ao país a última palavra sobre tudo que acontece ao longo de seu curso.

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A construção da barragem etíope foi, além de motor do desenvolvimento, uma manifestação de orgulho nacional. A obra foi financiada em parte pelos etíopes, que individualmente compraram ações da empresa, um ato patriótico amplamente estimulado pelo primeiro-ministro Abiy Ahmed Ali. Moderno e progressista, Ahmed encerrou uma longa e destrutiva guerra com a Eritreia — gestão que lhe rendeu o Nobel da Paz no ano passado — e está empenhado em fazer da Etiópia uma potência regional. O processo de avanço começou antes: na última década, o PIB cresceu na média quase 10% ao ano, o dobro da africana, e a faixa de população na pobreza extrema, que era de 60%, baixou à metade. “Por causa da hegemonia egípcia e de tratados injustos, a Etiópia nunca teve no Nilo fonte de desenvolvimento. A barragem é vista como uma reparação histórica”, diz William Davison, do International Crisis Group, de Washington.

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O domínio do Nilo é ponto nevrálgico da vida africana há milênios. Definido pelos faraós como “presente dos deuses”, o rio carregou em suas águas os monumentais blocos de granito usados na construção das Pirâmides de Gizé, 4 500 anos atrás. O embate egípcio com a vizinha Etiópia em torno do rio se intensificou a partir da dominação islâmica do Egito, que levou a constantes confrontos com o império etíope, o primeiro da África a aderir ao cristianismo — de uma de suas províncias teria partido a bíblica rainha de Sabá, que encantou o rei Salomão. Essa cruzada do século XXI, centrada na barragem da hidrelétrica etíope, pode sacudir o pó da herança colonial e resultar em uma inédita mudança da conformação geopolítica da região. Nada que abale o imponente Nilo, que seguirá seu curso e seu destino de sustentar populações inteiras às suas margens.

Publicado em VEJA de 29 de julho de 2020, edição nº 2697

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