África do Sul encara hoje eleição mais importante desde o fim do apartheid
Candidato do partido de Mandela é favorito para reeleição, mas enfrentará descontentamento do eleitorado e alta abstenção
A África do Sul vai às urnas nesta quarta-feira, 8, para votar em eleições legislativas e provinciais. O pleito é o sexto desde a redemocratização do país e acontece 25 anos depois da eleição de Nelson Mandela e do fim oficial do regime de segregação racial do apartheid, em 1994.
“As duas últimas eleições foram muito relevantes, mas a votação de 2019 será a mais importante desde o início da democracia”, afirma Christi van der Westhuizen, professora da Universidade Nelson Mandela e analista política. Para ela, o pleito deve consolidar a perda de apoio maciço do partido Congresso Nacional Africano (CNA) e realçar o descontentamento da população com a atual situação do país.
Em 2016, a legenda perdeu as prefeituras das três maiores cidades do país nas eleições municipais: Pretória, Mandela Bay e Joanesburgo.
Apesar do desemprego, da corrupção e de uma sociedade que sofre cada vez mais com a desigualdade, o partido que consagrou Nelson Mandela ainda é o favorito – e seu líder e atual presidente, Cyril Ramaphosa, deve ser eleito com folga.
Entretanto, o descontentamento da população com a corrupção no CNA e com a atual situação econômica do país devem ter reflexos diretos na redução dos votos que o partido receberá, em especial nas grandes cidades e entre a população negra de classe média.
A legenda foi fortemente prejudicada pela renúncia do ex-presidente Jacob Zuma, forçado a deixar o cargo pelo envolvimento em diversos casos de corrupção em 2019, após quase 10 anos de governo.
O populismo do ex-presidente, sua prepotência e seu descaso com os recursos públicos afastaram muitos eleitores da histórica legenda política, conhecida por ter lutado na linha de frente pelo fim do apartheid. Ainda assim, o CNA e seu líder aparecem nas pesquisas com 56,9% de aprovação.
Ramaphosa, de 66 anos, era vice-presidente de Jacob Zuma e assumiu a Presidência após a mudança de poder. Foi uma das mais importantes vozes a pedir a renúncia do ex-presidente dentro de seu partido e é considerado um homem honesto por grande parte da população. Não é alvo de investigações por corrupção.
Seus principais concorrentes são os partidos Aliança Democrática (AD), de Mmusi Maimane, e Lutadores pela Liberdade Econômica (EFF, na sigla em inglês), de Julius Malema. As pesquisas atribuem a eles cerca de 15% (AD) e 10% (EFF) dos votos.
Para conquistar os eleitores desiludidos com o partido, Ramaphosa aposta em uma série de promessas para combater o desemprego, mesma estratégia adotada por Maimane. Ex-sindicalista e uma das principais personalidades que lutaram contra o apartheid, o atual presidente afirma que criará quase 300.000 postos de trabalho por ano.
Desde que chegou à liderança do CNA, o empresário também repete que é o homem da mudança e que vai pôr fim à corrupção.
‘Bolsonaro sul-africano’
A oposição, por outro lado, defende que a África do Sul precisa de uma transição real após 25 anos de governo do CNA e oferece uma agenda econômica reformista baseada no livre mercado.
“Não interessa à África do Sul dar um mandato poderoso a um partido que falhou conosco nos últimos 25 anos. (…) O melhor que podemos fazer é colocar o CNA abaixo dos 50%”, disse Maimane em recente comício realizado no país.
Tradicionalmente associada ao voto da minoria branca, contudo, a legenda de centro-direita AD ainda está longe de atingir a maioria da população. Mmusi Maimane, um pastor carismático de 38 anos, é o primeiro líder negro desse partido e tem sido tratado pela imprensa internacional como um candidato radical que se assemelha a Donald Trump, dos Estados Unidos, e até mesmo a Jair Bolsonaro.
“Proteja nossas fronteiras”, diz um dos cartazes da campanha do AD. Assim como os líderes brasileiro e americano, Maimane também fala sobre imigração de forma severa e propõe um programa de deportação “humanitário” para imigrantes sem documentos.
Para Maimane, os estrangeiros ilegais são uma das principais razões para o aumento dos índices de criminalidade do país e se aproveitam dos programas de assistência social e de distribuição de medicamentos para aids, que deveriam ser destinados apenas aos sul-africanos.
A violência contra imigrantes já causou mais de 60 mortes e deixou 50.000 pessoas desalojadas desde 2008, quando imagens de um homem moçambicano sendo queimado vivo tornaram-se manchetes nos meios internacionais. Episódios de agressões têm ressurgido regularmente desde então, principalmente contra zimbabuenses, moçambicanos, malawianos e até imigrantes de Bangladesh e do Paquistão.
Outro adversário expressivo de Ramaphosa, o populista de esquerda Julius Malema também aposta em políticas que muitos analistas consideram perigosas para um país que saiu do regime segregacionista há apenas 25 anos e que podem estimular novos conflitos raciais.
O líder do EFF, um partido fundado em 2013, defende ideias radicais, como a desapropriação de propriedades de famílias brancas sem a devida compensação em prol de agricultores negros e a estatização da mineração.
Tanto o AD como o EFF buscam conquistar os eleitores que estão descontentes com os casos de corrupção envolvendo o CNA e apostam em propostas radicais e nacionalistas para chamar a atenção.
Baixo comparecimento nas urnas
Para analistas sul-africanos, o pessimismo da população em relação a qualquer mudança de cenário no país pode levar a um baixo comparecimento às urnas nesta quarta-feira. Na África do Sul, o voto não é obrigatório, e todos os cidadãos com mais de 18 anos têm direito de se registrar para participar nas eleições.
Os cidadãos, contudo, estão cansados da corrupção e decepcionados com seus ídolos políticos, que parecem pouco fazer para mudar a situação atual. O país é considerado hoje o mais desigual do mundo, sua economia voltou a cair em recessão pela primeira vez desde 2009 em setembro passado, e a taxa de desemprego chegou a 27,1% no último trimestre de 2018.
Segundo os últimos dados divulgados pelo governo, mais de 9 milhões dos 26,7 milhões de sul-africanos que são elegíveis para votar simplesmente não se registraram no órgão eleitoral, incluindo 82,5% dos jovens que recém completaram 18 anos e participariam pela primeira vez de um pleito em 2019.
“Os sul-africanos são muito engajados politicamente, mas estão decepcionados”, diz Christi van der Westhuizen. “Muita gente não vai sair de casa para votar, especialmente porque o problema da desigualdade social não foi tratado de forma suficiente”.
Ainda assim, a eleição tem a reputação de ser uma das mais transparentes e confiáveis do continente africano. Isso é atribuído, em grande medida, ao bom desempenho da Comissão Eleitoral Independente (IEC, na sigla em inglês), organizadora da votação.
Além disso, a trajetória dos processos eleitorais na África do Sul é pacífica desde a consolidação da democracia.
Como funcionam as eleições?
Os sul-africanos irão às urnas para votar em representantes da Assembleia Nacional. Estão habilitados para a disputa nada menos que 48 partidos, um recorde no país, com 19 a mais do que nas eleições de 2014.
Posteriormente, os legisladores serão os responsáveis por votar no próximo presidente da África do Sul para um mandato de cinco anos.
Com o mesmo sistema de representação proporcional, hoje também serão eleitas as autoridades de cada província sul-africana.
A IEC deve informar os primeiros resultados oficiais no dia seguinte da votação. Se não houver apelações contra os resultados, o órgão tem um prazo máximo de sete dias para proclamar os resultados oficiais.
A partir daí, serão iniciados os trâmites parlamentares para designar o novo presidente, mas a cerimônia de posse já tem uma data prevista: 25 de maio, na cidade de Pretória.