A voz da razão: a rejeição dos chilenos ao novo texto da Constituição
Resultado é ainda mais conservador do que a Constituição de Augusto Pinochet. Por falta de coisa melhor, a Carta do general segue em vigor
![SANTIAGO, CHILE - DECEMBER 17: President of Chile Gabriel Boric gives a speech upon learning the results of the 2023 Constitutional Elections on December 17, 2023 in Santiago, Chile. After the affirmative referendum in 2020 to reformulate the constitution, the new draft was rejected with 62% of the votes. On December 17, the citizens of Chile rejected again the draft with the 55% of the votes. (Photo by Sebastián Vivallo Oñate/Agencia Makro/Getty Images)](https://preprod.veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/12/GettyImages-1863409381.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1280&h=720&crop=1)
O que era para ser a pá de cal definitiva nos últimos resquícios da ditadura de Augusto Pinochet no Chile acabou em clima melancólico — e a Constituição aprovada pelo general em 1980 segue em vigor, depois que duas tentativas de substituí-la foram enterradas pela polarização entre esquerda e direita, de um lado, e, de outro, pelo absoluto tédio e desgosto da população com as picuinhas políticas. Mais triste ainda é a constatação de que, postas as cartas na mesa, a manutenção da Carta do período ditatorial foi uma vitória do bom senso. Vontade não faltava para a mudança: quando a discussão começou, em meio a uma onda de protestos violentos contra a desigualdade em 2019, esmagadores 78% dos chilenos disseram “sim” à troca em um referendo histórico. Os projetos apresentados desde então, no entanto, continham absurdos e retrocessos em série.
No primeiro, a assembleia constituinte eleita para redigir o novo texto foi dominada pela extrema esquerda e afastou a maioria dos eleitores com propostas progressistas absurdas — como o direito à alimentação “culturalmente apropriada” e à “desconexão digital”, entre outras —, rejeitadas em 2022 por quase dois terços dos votos. Na segunda tentativa, a nova assembleia, dominada agora pela extrema direita, apresentou ideias ainda mais conservadoras que as da Carta de Pinochet — como o conceito da “objeção de consciência”, para dar a profissionais a opção de se negar a praticar aborto, aprovado no país sob certas condições, e a restrição de direitos da comunidade LGBTQIA+. No domingo 17, 56% dos eleitores rechaçaram esse projeto.
À primeira vista, o presidente Gabriel Boric, de esquerda, ganhou um respiro por não ter de promulgar uma Constituição encabeçada pelo arqui-inimigo político José Antonio Kast, líder de extrema direita, com quem disputou a eleição em 2021. Mas sua situação atual não permite comemorações: não conseguiu passar quase nada no Congresso ao longo do processo constitucional e sua aprovação estacionou em míseros 33%. “A rejeição do texto foi uma derrota para Kast”, diz Leandro Lima, da consultoria Control Risks. “Porém, não significa uma vitória de Boric.” O presidente sente os efeitos da economia estagnada pós-pandemia e do descontentamento da população com o racha entre os dois. Uma pesquisa do Centro de Estudos Públicos revelou que 70% dos chilenos preferem líderes políticos que buscam o consenso em vez de defender a ferro e fogo suas agendas, um salto de 11 pontos percentuais comparado a junho. Prova de que o Chile está cansado das ideologias que não conversam com a realidade.
Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2023, edição nº 2873