A missão quase impossível do prefeito de Nova York contra os roedores
Eric Adams recentemente anunciou a criação de um cargo de nome curioso para liderar o ataque ao problema — diretor de mitigação de roedores
Os ratos apareceram sobre o globo há mais ou menos 56 milhões de anos, ramificando-se nas mais diversas espécies. Em alguns cantos do planeta, eles vêm prosperando com notável vigor por encontrar condições mais propícias à existência. É assim em Nova York, cidade que, segundo especialistas nesses pequenos mamíferos, está entre as que mais registram sua presença, já incorporada à paisagem urbana e até à literatura que lança luz sobre Manhattan. “Este deve ser o tipo certo de lugar para um cara durão como você. Latas de lixo. Ratos em abundância”, escreveu Truman Capote em Bonequinha de Luxo, trazendo à cena nova-iorquina dos anos de 1950 os roedores que, na realidade, nem nativos de lá são. Vieram a bordo de navios ingleses e franceses no século XVIII, reproduziram-se à vontade e, hoje, chegam à casa dos milhões — cálculos estimam que haja um para cada habitante na efervescente cidade que não prega os olhos.
Pois neste momento eles são o alvo de uma cruzada capitaneada pelo prefeito Eric Adams, que recentemente anunciou a criação de um cargo de nome curioso para liderar o ataque ao problema — diretor de mitigação de roedores, que os locais logo apelidaram de “czar dos ratos”. A ideia é extinguir o máximo possível deles, mapeando as zonas onde mais se proliferam, fazendo uma faxina em áreas abandonadas e tentando pôr ordem à coleta de lixo, que normalmente passa horas à deriva, servindo de alimento a esses animais de uns 350 gramas cada, objeto de ódio declarado do prefeito. Os últimos dados que o alcaide soltou revelam que sua ocorrência só cresce — ela dobrou no último ano. Movido pela promessa de radicalizar no combate, Adams diz que o pré-requisito básico para ocupar o novo posto é ser “muito motivado e um tanto sanguinário”.
Conter a superpopulação desses seres que preocupam pelo potencial de transmitir um leque de 35 doenças, como peste bubônica, leptospirose e tifo, é medida altamente recomendada pela ala mais séria da saúde pública. O que varia é a dose. Adams encampa uma espécie de plano “roedores zero”, enquanto a maior parte da comunidade científica, ciosa do equilíbrio da cadeia alimentar, sustenta sua presença em níveis controlados (e o mais longe possível dos humanos). Afinal, eles são presas de aves e predadores de insetos como mosquitos e baratas, que, na sua ausência, se disseminariam, desembocando em outro enrosco. Também a dinâmica da reprodução das espécies é um freio às ambições de Adams. Com a população de roedores em patamares baixos demais, pode vir a se observar um efeito bumerangue, no qual há fartura de alimentos para poucos, que, ultrassaciados, ganham impulso para se multiplicar novamente. “A extinção completa dos ratos é uma meta inalcançável”, diz a canadense Cheryl Almada, especialista em saúde pública.
É bem sabido pela biologia que os ratos se sentem confortáveis em habitats onde encontram mais comida e abrigo — daí se atraírem tanto por aglomerações urbanas mundo afora. Nova York lhes oferece o tripé dos sonhos: elevada densidade demográfica, infraestrutura antiga em diversas áreas e lixo depositado nas calçadas à noite, embora seja coletado apenas de manhã. “Como os ratos são animais noturnos, eles passam a madrugada se deliciando entre os restos”, explica o epidemiologista Jonathan Richardson, da Universidade de Richmond. A tática de estreitar a janela de tempo em que os dejetos permanecem expostos tende a desencadear uma luta entre os representantes da espécie e, assim, naturalmente regular o tamanho de sua população, já que eles terão de competir por alimento. Em paralelo, também uma disciplinada política de tratamento de esgoto e o zelo em relação à infraestrutura nas cidades se fazem necessários.
Outra metrópole infestada é Paris, onde a Academia Francesa de Medicina soltou um alerta sobre sua ameaça à saúde humana. O problema se acentuou nos últimos dias com a polêmica reforma da Previdência do presidente Emmanuel Macron, que desencadeou greves em série, inclusive a dos garis. E logo se avistou uma montanha de 7 000 toneladas de lixo nos bulevares da Cidade Luz, um banquete e tanto para a turma roedora. Eis que em meio à escalada deles a vereadora parisiense Douchka Markovic, integrante do minúsculo Partido Animalista (cuja causa número 1 é a proteção dos animais), veio aos holofotes defender a tese de que esses mamíferos devem ser protegidos, uma vez que fazem o controle de resíduos dos esgotos locais. Ela, que sugere não chamá-los de ratos, mas pelo mais afetuoso surmulot (algo como “grande rato do campo”), é a favor de táticas “não letais”, como tapar bueiros, para que não deixem o mundo subterrâneo, e passar a limpar as ruas à noite, quando saem da toca — medidas vistas apenas como paliativas por uma parcela dos sanitaristas. Suas propostas serão implantadas experimentalmente em dois bairros de Paris. A ver no que essa brincadeira de gato e rato vai dar.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834