A hora do tudo ou nada para Javier Milei
Argentino investe pesado para convencer eleitores céticos nas eleições legislativas de outubro. A vitória será decisiva para garantir o futuro de seu projeto
 
                Eleições legislativas de meio de mandato presidencial são consideradas, em vários pontos do mundo, uma espécie de referendo do trabalho tocado pelo chefe do Executivo em seus dois primeiros anos no poder. Presidentes populares costumam emplacar maioria no Congresso, algo decisivo para acelerar a agenda, enquanto os mal avaliados se veem obrigados a repensar os rumos e tecer costuras com uma oposição revigorada. A situação do argentino Javier Milei, que encara em outubro uma renovação de metade das 257 cadeiras da Câmara e um terço das 72 do Senado, ganha tintas mais gritantes, uma vez que seu partido segue em franca minoria, com 39 deputados e sete senadores. Até aqui, ele, que se autodenomina anarcocapitalista e está próximo da direita mais radical, só vinha conseguindo fazer valer sua “terapia de choque”, como apelida o pacotaço de medidas parcialmente aprovadas, graças a uma lei que lhe concedia autoridade para legislar sobre matérias de teor administrativo, econômico e financeiro. Mas ela expirou há um mês, e não demorou dois dias para a oposição desafiá-lo com a aprovação de um aumento nas aposentadorias e pensões, que Milei vetou.
 
    É apenas uma amostra do que o aguarda caso as urnas não lhe sejam favoráveis — justamente o horizonte que ele tenta evitar a todo custo ao correr contra o tempo e empreender esforços para cativar um naco do eleitorado que ainda o encara com ceticismo. Uma pesquisa recente mostra que as chances de o nanico partido que Milei criou em 2021, A Liberdade Avança, ganhar envergadura são hoje bastante razoáveis. Segundo a aferição, 40% dos argentinos declaram sua preferência pelo LLA, como a sigla é conhecida, dez pontos a mais que os peronistas aglutinados em torno do União pela Pátria, que por quatro décadas ocuparam a Casa Rosada, e muito à frente do PRO, do ex-presidente Mauricio Macri, agora em negociação com os governistas para formar uma aliança com o objetivo de isolar a oposição. A prisão em junho da ex-presidente peronista Cristina Kirchner, condenada por corrupção, esvaziou o campo adversário à esquerda, o que vem dando gás a Milei. “Sem rivais no caminho, ele tem tudo para ser coroado nas eleições”, avalia o historiador Eduardo Sartelli, da Universidade de Buenos Aires.
No xadrez eleitoral, Milei ostenta um trunfo relevante — ele conseguiu controlar a inflação em um país que historicamente pena com a flutuação dos preços. Sua política draconiana de corte de gastos governamentais é vista como um dos fatores de peso para o índice anual baixar de 211%, quando assumiu o leme, para os atuais 47%. E os efeitos se fizeram sentir no bolso: o valor dos aluguéis caiu à quase metade, e os salários subiram em termos reais pela primeira vez em anos. Até a pobreza, que em um primeiro momento avançou, acabou recuando para 38% em 2024, um patamar ainda alto, porém onze pontos menor do que em 2023. A isso se soma uma série de artifícios para valorizar o peso (este um freio à farra de brasileiros habituados a achar tudo barato em Buenos Aires) e generosos incentivos fiscais a setores como o agro, a quem beneficiou com isenção de impostos para soja, milho e gado. Para este ano, o FMI prevê crescimento de 5,5% do PIB argentino, o maior avanço na América Latina.
 
    Os observadores da cena argentina dizem, porém, que Milei caminha sobre uma linha finíssima na qual é difícil se equilibrar. Manter o peso artificialmente alto é sabidamente uma bomba-relógio. O fim das restrições à compra da moeda americana pela população fez disparar a demanda em 3 000% e as reservas cambiais do país continuam escassas, mesmo com o empréstimo emergencial de 20 bilhões de dólares do FMI. O risco de uma explosão no valor do dólar paira como uma ameaça, fazendo o empresariado, local e estrangeiro, pensar por ora duas vezes antes de investir. É uma das explicações para a atividade produtiva ter dado uma desacelerada desde abril. Em nome da saúde fiscal, também dos cofres públicos não têm saído vultosas somas, e reformas cruciais, como a tributária e a previdenciária, estão em compasso de espera. “A abordagem de Milei vem funcionando e isso deve ser reconhecido nas eleições, mas a grande questão argentina é fazer esses ganhos perdurarem no longo prazo”, afirma Ramiro Blazquez, estrategista para a América Latina da consultoria StoneX.
Os desafios no horizonte do mandatário notório por suas idiossincrasias, das quais aliás adora falar (conversa com um cão morto via médiuns e é adepto do sexo tântrico), são gigantes. Sob o slogan “Não há dinheiro”, ele demitiu mais de 50 000 servidores públicos, fechou ou fundiu cerca de 100 departamentos e agências estaduais e congelou projetos de infraestrutura. Algumas alas da sociedade foram particularmente atingidas, como os aposentados e pensionistas, que registraram declínio acentuado no poder aquisitivo em razão dos cortes, e professores universitários, que relatam não conseguir permanecer na docência com os salários achatados — um baque na academia, onde 4 000 postos na área de pesquisa científica foram extintos. E, como esperado em uma nação afeita às manifestações, a insatisfação desaguou nas amplas avenidas de Buenos Aires em protestos quase semanais, em que a polícia tem entrado com tudo em cena, já contabilizando centenas de presos.
 
    Mesmo em contexto de elevada complexidade, nestes tempos em que líderes do mundo todo penam com a baixa popularidade, a aprovação de Milei oscila entre 45% e 50%. O estrondoso fracasso de seus antecessores deixou o povo exaurido, e os bons resultados da economia até então, embora vistos com cautela pelos calejados argentinos, trazem um certo otimismo. O nada discreto ocupante da Casa Rosada também vem se mexendo bem no tabuleiro geopolítico e sempre que pode se aproxima de Donald Trump, com quem compartilha bandeiras contra a imigração e a globalização e ojeriza à diversidade.
A tática tem surtido efeito. O elo com o americano ajudou nas tratativas com o FMI e rendeu visita recente da secretária de Segurança Interna, Kristi Noem, que foi a Buenos Aires selar acordos de cooperação em comércio e segurança entre os dois países — além de iniciar o processo que dará direito aos argentinos de ingressar sem visto nos Estados Unidos, um desejo expresso pela população local. Em outro sinal da boa vontade da Casa Branca, o tarifaço que sacode a economia brasileira, assim como tantas outras, também chegou à Argentina, mas no nível brando que se convencionou chamar de taxa-base, de apenas 10%. É notícia mais do que bem-vinda nestas intensas semanas pré-eleitorais. Sair exitoso do pleito que se avizinha será certamente um marco importante para Milei, garantindo o futuro de seu projeto político no país.
Publicado em VEJA de 8 de agosto de 2025, edição nº 2956
 
	 
 										 
 										 
 										 
 										 
 										 
 										 
 										 
 										 
 										 
 										 
 										 
 										







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