Último Mês: Veja por apenas 4,00/mês
Continua após publicidade

A dança da dissidência

Um modo de entender as crises políticas russas é acompanhar o número de bailarinos que deixam as grandes companhias clássicas de Moscou e São Petersburgo

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h22 - Publicado em 26 mar 2022, 08h00

“Nunca pensei que teria vergonha da Rússia. Mas agora acho que foi traçada uma linha que separa o antes e o depois.” Foi assim, numa publicação no Telegram, que a primeira-bailarina do Bolshoi, Olga Smirnova, anunciou a saída da trupe moscovita. Nascida e criada em São Petersburgo, tendo um dos avós ucraniano, ela se juntou ao Balé Nacional da Holanda. Fará o pas de deux com o solista brasileiro Victor Caixeta, bailarino de Uberlândia que saiu do Mariinsky, celebrada instituição artística da cidade das noites brancas de Dostoiévski. “Tive de tomar a difícil decisão de deixar a Rússia, o lugar que foi minha casa durante quase cinco anos”, publicou em suas redes sociais. Outro brasileiro, o fluminense David Motta Soares, também do Bolshoi, arrumou as malas e partiu. “Tenho muitos amigos na Ucrânia, e nem de perto consigo imaginar o que eles podem estar passando, que meu coração fique com eles”, escreveu.

NA REDE E DE TUTU - No intervalo do espetáculo: a Copa de 2018 no celular -
NA REDE E DE TUTU - No intervalo do espetáculo: a Copa de 2018 no celular – (@gaglianonebruna/Instagram)

A defecção de Olga, Victor e David, entre outros, ecoa a postura de duas das maiores lendas da dança no tempo da União Soviética. Em 1961, em uma turnê do balé Kirov em Paris, consentida pelas autoridades do Kremlin porque ajudaria a espalhar a grandeza da cultura soviética, o tártaro Rudolf Nureyev deu um jeito de não voltar para casa. Já no aeroporto parisiense de Le Bourget, como quem fizesse um assemblé acrobático, pulou uma catraca e avisou: “Quero ser livre”. Em 1974, foi a vez de Mikhail Baryshnikov, asilado em Toronto, no Canadá. Há um padrão: o balé, tão leve, tão delicado, tão sublime, é desde sempre termômetro da ebulição da Rússia. Se há movimento de dissidência, é porque as engrenagens do poder incomodam — ou, como escreveu Smirnova, uma linha foi desenhada, impondo alguma tomada de posição. “Não posso agir como se nada estivesse acontecendo”, disse Motta Soares.

A diáspora dos dançarinos, portanto, é uma medida política. A revista britânica The Economist mantém o “índice Big Mac”, afeito a medir o poder de compra em mais de 100 países a partir do preço do sanduíche. Um suposto “índice sapatilha no exílio” mediria o incômodo dos russos, e de quem vive lá, ante o autocrata de plantão. Não por acaso, como confirmação da relevância da suprema arte aos olhos do mundo, o ex-primeiro ministro Dmitri Medvedev, fantoche de Vladimir Putin, chamou o balé, há alguns anos, de “arma secreta”. Ou, na linguagem diplomática, o soft power destinado a fixar imagens edulcoradas e mover montanhas, a derradeira ferramenta pacífica apresentada antes de as bombas caírem.

PARIS E NOVA YORK - Nureyev e Baryshnikov: exílio no tempo da URSS -
PARIS E NOVA YORK - Nureyev e Baryshnikov: exílio no tempo da URSS – (Jack Mitchell/Getty Images; Julio Donoso/Sygma/Getty Images)

O balé, enfim, especialmente a escola clássica daquela região do mundo, ajuda a entender a guerra de agora. Quando a estação de TV russa independente Dozhd foi retirada do ar pelo governo, no início do mês, o derradeiro ato foi pôr nas telas cenas do Lago dos Cisnes. “Foi uma trolagem épica”, diz o historiador Simon Morrison, autor do livro Bolshoi Confidencial. A mesmíssima filmagem foi exibida em rede quando os tanques desfilaram por Moscou, em 1991, depois de Mikhail Gorbachev ser capturado em sua dacha na Crimeia. “Quando o golpe foi deflagrado, as telas ficaram com Tchaikovsky porque não queriam que as pessoas soubessem o que estava acontecendo”, lembra Morrison. Ou seja: o Lago dos Cisnes de fevereiro de 2022 era a senha para que a população fosse avisada de que algo muito ruim — e censurado pelas autoridades — estava acontecendo na Ucrânia. A mensagem foi entendida por boa parte do povo, para quem o balé é tão popular quanto o futebol. Viralizou, aliás, durante a Copa do Mundo de 2018 a linda imagem das bailarinas do Bolshoi, de tutu, debruçadas no celular, no intervalo de uma das apresentações, para acompanhar uma partida decisiva da Rússia. A fotografia foi feita pela maranhense Bruna Gaglianone, bailarina do teatro, e que há duas semanas também disse adeus à casa.

É possível que os bailarinos sem chão retornem a Moscou e São Petersburgo, a depender do futuro dos combates na Ucrânia e do concerto global. Por ora, a debandada comprova que há algo fora de ordem na nova ordem mundial. Se não voltarem, vale lembrar a frase irônica e dura de Nureyev, instado a dizer o que sentia sem pátria: “Nunca lamentei ter deixado a Rússia. Para mim, um país é apenas um lugar para dançar”.

Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Veja e Vote.

A síntese sempre atualizada de tudo que acontece nas Eleições 2024.

OFERTA
VEJA E VOTE

Digital Veja e Vote
Digital Veja e Vote

Acesso ilimitado aos sites, apps, edições digitais e acervos de todas as marcas Abril

1 Mês por 4,00

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (equivalente a 12,50 por revista)

a partir de 49,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.