A busca por vida mais calma esvazia (e barateia) Nova York
A pandemia acelerou um movimento que já se esboçava: a mudança de outras grandes cidades para locais mais calmos e mais baratos
Encerrada a inédita fase de cidade fantasma durante a pandemia, Nova York empreende desde julho uma lenta volta à normalidade, permitindo a reabertura de museus, prédios históricos, shopping centers e academias de ginástica. Em vez de retomar o cotidiano de sempre, porém, uma parcela significativa de nova-iorquinos resolveu deixar os arranha-céus para trás e começar vida nova em outro local, dando partida a uma fuga de moradores como não se via desde a espiral de violência e decadência que engolfou a cidade nos anos 1970. Entre junho e julho deste ano, mais de 120 000 apartamentos foram postos à venda, um aumento de 26% em relação ao mesmo período em 2019.
O êxodo afeta também o disputadíssimo mercado de locação. Só em Manhattan, onde estão alguns dos aluguéis mais altos do planeta, há mais de 13 000 casas e apartamentos à espera de inquilinos, um salto de 122% na comparação com o ano passado. Por causa disso, o aluguel médio nos contratos fechados nos últimos tempos baixou 20%, para 3 167 dólares (cerca de 18 000 reais, uma pechincha na Big Apple). “A tendência é que continue a cair pelo menos até março do ano que vem”, diz Nancy Wu, economista do site de imóveis StreetEasy. O destino de quem vai embora são cidades tranquilas em estados como Vermont e Geórgia, onde o custo de vida é bem mais baixo. Julian Gallo, gerente de produtos de uma editora de audiolivros, trocou seu apartamento em Manhattan por uma casa espaçosa na pacata Charleston, na Carolina do Sul, e está levando junto três amigos. “Quem paga um aluguel caríssimo em Nova York quer ter acesso aos melhores restaurantes, vida noturna, teatros, museus. Agora que não dá para fazer praticamente nada, não vi motivo para continuar por lá”, diz Gallo.
O esvaziamento da vida social e do entretenimento, a facilidade do home office e o fantasma do desemprego trazidos pela pandemia aceleraram um movimento detectado em levantamentos demográficos no ano passado não só em Nova York, mas também em Los Angeles e Chicago. A Grande Nova York registra a perda de 277 habitantes por dia e, ao contrário de fluxos migratórios anteriores, essas pessoas, a maioria jovens, não percorrem apenas os poucos quilômetros até os subúrbios — elas vão bem mais longe. Houston, Dallas, San Antonio e Austin, as maiores cidades do Texas, ganharam 3 milhões de habitantes ao longo da última década. Phoenix, no Arizona, e Las Vegas, em Nevada, recebem 100 000 novos moradores por ano. Acredita-se que o fenômeno possa até alterar o mapa eleitoral americano: gente vinda de centros urbanos, mais liberal e progressista, influenciando as regiões conservadoras no interior. “O fato de essa parcela da população se espalhar pelo país pode ter impacto nas eleições de novembro”, avalia William Frey, demógrafo da Brookings Institution.
Em Nova York, a pandemia fez evaporar meio milhão de postos de trabalho, o que elevou a taxa de desemprego a 20%. Calcula-se que 2 800 empresas já fecharam e que 240 000 pequenos negócios correm sério risco de seguir destino semelhante nos próximos meses. A recessão tem reflexos na segurança pública (problema que também afeta Chicago e outras metrópoles): em julho, o número de vítimas de crimes com armas de fogo foi 165% maior do que no mesmo mês de 2019. “Uma mulher foi esfaqueada na estação de metrô perto da minha casa em pleno meio-dia”, diz Shiva Khansari, assistente de advocacia que se mudará para Vermont nos próximos dias. Nova York nunca mais será a mesma? “Ela vai se recuperar”, prometeu o comediante Jerry Seinfeld, em artigo dirigido aos que vão embora. “Choramingar por não poder ir ao teatro por um tempo não tem nada a ver com o caráter que fez de Nova York o diamante de atividade que ainda voltará a brilhar.”
Publicado em VEJA de 9 de setembro de 2020, edição nº 2703